Título: IGP, dívidas e tarifas públicas
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Com a proximidade do prazo de 30 de abril para Estados e municípios ajustarem sua dívida aos limites legais, há um aumento das pressões de governadores e prefeitos para ampliar tais limites e/ou esse prazo. Há também pressões de ex-prefeitos que deixaram seus cargos em 1.º de janeiro e também um legado de contas a pagar do ano passado, sem os recursos correspondentes, em conflito com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Esses assuntos estão juntos no noticiário, mas não cabe misturá-los. Tais prefeitos geriram o fluxo anual de receitas e despesas municipais, e a situação desequilibrada que deixaram freqüentemente decorreu de suas decisões de gastar além das disponibilidades de recursos. Nos termos da LRF cabem punições e ela será desmoralizada se não for aplicada ou se for modificada para evitá-las.

Já a discussão dos limites de endividamento e do respectivo prazo de ajuste tem outra dimensão, a da dívida acumulada por sucessivos governadores e prefeitos. Aí o estouro dos limites pode ter duas fontes. A primeira seria a acumulação de mais dívidas novas em decorrência de gestão irresponsável do último administrador, à maneira referida no parágrafo anterior, caso em que novamente cabe punir o (ir)responsável.

De outra origem é o estouro dos limites de endividamento, ou a dificuldade de adequação a eles dentro do prazo, como resultado do critério de correção, por conta da inflação, do valor da dívida de Estados e municípios com o governo federal, a qual é a mais importante dos governos subnacionais.

Aí assiste razão a Estados e prefeituras quando reclamam que esse reajuste é de tal modo distorcido que por si mesmo tem conduzido alguns deles à impossibilidade de cumprir tanto o limite quanto o referido prazo. Isso mesmo na hipótese de não terem contraído dívida nova, ou seja, um crescimento da dívida além de sua correção pela inflação.

O problema vem do índice de correção, que tem crescido mais que a inflação adequadamente medida, e também mais que a receita de Estados e municípios. Trata-se do Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação Getúlio Vargas. O IGP existe desde 1947 e desde então nunca mudou sua estrutura, baseada em média ponderada de três outros índices, na qual um de preços por atacado participa com 60%, um de preços ao consumidor entra com 30% e um de custos da construção civil tem o peso de 10%. Se essa ponderação tinha alguma lógica em 1947, esta já se perdeu na poeira da História e das mudanças estruturais por que passou a economia brasileira. O relevante é que nas condições atuais esse índice exagera a participação dos preços por atacado na sua composição. Por sua vez, esses preços incluem os de vários produtos, como os derivados do petróleo e o aço, ligados a cotações internacionais. Em razão disso, o IGP é mais afetado tanto por variações da taxa de câmbio como pelo que se passa nos mercados externos dos produtos que inclui. No caso do aço, por exemplo, seus preços vêm tendo sensíveis aumentos, que repercutem mais intensamente no IGP do que em outros índices de inflação.

Que índices são esses? O mais importante é o Índice de Preços ao Consumidor - Ampliado (IPCA) do IBGE, oficialmente adotado pelo Banco Central no seu regime de metas de inflação. Medir a inflação por um índice desse tipo é prática internacional e se sabe também que o IPCA está mais próximo da inflação medida pelo sistema de Contas Nacionais da mesma instituição do que o IGP.

Com essas características, desde a desvalorização cambial de 1999 o IGP tem persistentemente superado o IPCA na sua taxa anual, merecendo destaque o ano de 2002, em que o primeiro cresceu 27,7% e o segundo, 12,5%. Ora, a receita dos Estados e municípios também cresce com a inflação, mas não consegue acompanhar o IGP, que reajusta sua dívida com a União.

Entretanto, embora seja correto argumentar contra esse uso do IGP, não cabe alterar os limites de endividamento ou mesmo o prazo de ajuste para acomodar de um modo geral esse efeito, pois em cada Estado ou município ele foi específico e a dívida de seus governos pode ter crescido por outras razões. Assim, caberia apenas alguma exceção pelo efeito do IGP em cada caso, mas sem alteração dos critérios e prazos atuais em sua aplicação geral.

Mesmo essa exceção não é uma questão simples, pois o grosso da dívida de Estados e municípios com a União surgiu porque esta assumiu a dívida deles junto ao mercado e passou à condição de credora deles. Assim, essa dívida de Estados e municípios está tanto no ativo como no passivo da União, com o que ela recebe, mas também paga, juros e a correção por conta da inflação. Portanto, se concedesse menor correção à dívida dos Estados e municípios, teria de arcar com a diferença relativamente à que paga pelo valor correspondente de sua dívida própria, em que há também papéis corrigidos pelo IGP.

Assim, também na dívida federal esse índice provoca estragos, o mesmo acontecendo com seu uso no reajuste dos preços (mal) administrados pelo governo (em particular, tarifas de serviços públicos como energia elétrica e telefones). Nessa linha, a atual discussão sobre o efeito do IGP na dívida de Estados e municípios é uma oportunidade que deveria ser aproveitada para eliminar daqui para a frente o uso dele para corrigir de forma distorcida o impacto da inflação sobre preços e ativos financeiros.

Essa utilização constitui um entulho inflacionário que aguarda sua tardia remoção do sistema de preços da economia, o que facilitaria o controle da inflação e evitaria outros disparates, como esse de seu efeito sobre a dívida de Estados, de municípios e do próprio governo federal.