Título: Considerações sobre a guerra civil espanhola
Autor: J. O. de Meira Penna
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Uma recente visita à Espanha me trouxe à memória o impacto que, sobre todos aqueles que eram jovens ou adolescentes nos anos 1930, exerceu a guerra civil de 1936-39, prelúdio ominoso ao mais sangrento e extenso conflito da História, a 2.ª Guerra Mundial. Em Madri, achei desde logo curiosas as mudanças que sofreu o nome de sua principal avenida comercial, a Gran Via. Quando, menino ainda, acompanhei meu pai numa excursão turística à Espanha, visitando as exposições internacionais de Barcelona e Sevilha, a Gran Via homenageava Pi y Margall. Era um anarquista, discípulo de Proudhon, que se salientou no período da Primeira República espanhola, no século 19. Notai que o caos político endêmico só podia ser contido por um autoritarismo grosseiro, pois dos dois lados da cerca os próprios partidos se fracionavam e se combatiam. Naquela centúria, aliás, o país, atrasado e ingovernável, registrou uma das mais agitadas vidas políticas de sua história, marcada por pronunciamientos de generais num estado tedioso de permanente desordem e violência, de fazer inveja a qualquer republiqueta de banana.

O temperamento espanhol é ardente, impetuoso, brutal, e não por acaso são as touradas uma invenção hispânica! Monarquistas legitimistas, fundamentalistas católicos de Navarra, "carlistas", republicanos conservadores ou extremistas, regionalismos locais de catalães e bascos, aqueles levados ao anarquismo, estes ao terrorismo, ofereciam o espetáculo de um caos quase impenetrável. Notai que a desordem endêmica só podia ser contido por um autoritarismo arbitrário, pois dos dois lados da cerca os próprios partidos se fragmentavam e combatiam. A guerra civil foi provocada pelo assassinato do líder da oposição, Calvo Sotelo, e de centenas de padres e freiras Durante algum tempo, a Gran Via foi chamada pelo nome do fundador da Falange e filho do general Primo de Rivera (+1930), José Antonio, fuzilado pelos Rojos.

Como na página inteira deste jornal (12/12/2004), reproduzindo artigo do jornal Los Angeles Times, vê-se que a ignorância e a desinformação sobre esses eventos confusos se estendem até hoje. Surgiu, nessa ocasião, o termo detestável "fascismo", como conveniente simplificador geral de todos as opiniões de quem não se curva ao PC da esquerda. Notem que, em pleno conflito, miniguerras civis se registraram do lado dos Rojos, uma em Barcelona (1937), outra em Madrid (1939), ambas iniciadas por comunistas no empenho de dominar a situação.

O abominável episódio é importante por outros motivos: quatro dos mais notáveis escritores do século combateram do lado perdedor, George Orwell, Arthur Koestler, André Malraux e Ernest Hemingway. Hemingway distinguiu-se como o porta-voz da versão estatizante, ou social-democrática, do liberalismo que hoje conquista o mundo. Malraux tornou-se o braço direito de De Gaulle, mas foram Koestler e Orwell que se notabilizaram como os mais ardentes inimigos do totalitarismo, escrevendo algumas das obras fundamentais do século no confronto ideológico que acompanhou a guerra fria.

É interessante destacar esses fatos, pois o bom senso e o equilíbrio parecem, finalmente, haver dominado o temperamento combativo dos espanhóis, e o atual nome da indigitada avenida simboliza o desejo quase universal de esquecimento do pavoroso fratricídio que os envolveu. A Espanha de hoje é a Espanha de Franco. Franco, um galego muito pragmático e desprovido de fortes convicções, foi quem cuidadosamente a configurou, ao preparar sua sucessão na pessoa do rei Juan Carlos, educado para tal missão. O que os espanhóis hoje procuram é a Gran Via do desenvolvimento. Com um PIB per capita de US$ 20 mil e um mais rápido crescimento do que seus parceiros da União Européia, o país oferece sinais admiráveis de prosperidade, juntamente com uma intensa criatividade e originalidade no campo da cultura. O cinema espanhol já superou o de seus vizinhos continentais. Desapareceu a sombria religiosidade hispânica, fechada, inquisitorial, dedicada ao culto do sofrimento, do martírio e da cruz. Sobe à tona a notória sensualidade da mulher espanhola, que tenta corrigir o relutante machismo do toreador paranóico e sua inclinação ao sadismo - herança quiçá do longo passado mourisco.

Neste sentido, um papel importante venha caber ao feminismo, à criatividade que ainda está por produzir, na península, uma figura de mulher digna do gênio espanhol.