Título: Duplicidade no câmbio
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/01/2005, Economia, p. B2

O governo Lula corre o risco de ter duas políticas cambiais: a do Banco Central e a do Ministério do Desenvolvimento. Todos os dias, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, em consonância com o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, diz três coisas: 1) não há atraso cambial e o real não está sobrevalorizado; 2) as compras de moeda estrangeira pelo Banco Central e pelo Tesouro têm o único propósito de recompor reservas; e 3) em hipótese nenhuma essas operações de compra têm por objetivo puxar as cotações do dólar.

No entanto, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Furlan, está anunciando uma decisão administrativa, a vigorar a partir de março, cujo objetivo declarado é provocar certa escassez de moeda estrangeira no câmbio interno de maneira a aumentar a cotação do dólar. Essa medida consiste em aumentar o prazo máximo, hoje de seis meses, de liquidação do câmbio pelos exportadores.

É verdade que essa medida administrativa pode não ser suficiente para reverter a atual tendência à valorização do real diante do dólar e que podem ser necessárias outras. No entanto, o importante aí não é a medida administrativa em si mesma, mas o efeito desejado, que é não só facilitar a vida do exportador, mas ajudar a desvalorizar o real diante do dólar.

Como pode ser depreendido pela entrevista com o ministro Furlan publicada à página B1, os pressupostos dessa decisão opõem-se aos que ancoram a política cambial administrada pelo Banco Central. Furlan está dizendo que: 1) há atraso cambial; 2) a valorização excessiva do real está prejudicando as exportações; e 3) as medidas administrativas do governo Lula vão, a partir de março, trabalhar para provocar a desvalorização do real de maneira a favorecer as exportações.

Divergências dentro do governo não são novidades e, enquanto não houver uma decisão final, são saudáveis porque aperfeiçoam uma política. Foi assim, por exemplo, no projeto de lei das PPPs, cujo resultado final, obtido depois de acirradas discussões e externamento de divergências dentro e fora do governo, foi notoriamente melhor do que o prenunciado pelo projeto de lei original.

Embora mais sensível, a política de juros também é foco de controvérsias. Mesmo quando ministros de Estado ou o vice-presidente divergem do Banco Central, não há risco de desinformação ou de prejuízo para a política de gerenciamento das expectativas, porque esta é matéria de responsabilidade exclusiva do Banco Central. Daí por que se espera que as autoridades da área monetária tenham autonomia para tomar suas decisões a despeito do que disserem autoridades de outras áreas.

Muitas vezes, mesmo depois de tomada a decisão final, é tolerável a persistência de certo nível de divergência dentro do governo, como se viu no caso da Lei dos Transgênicos. No entanto, a área de câmbio é tremendamente delicada. Em nenhum momento podem pairar dúvidas sobre a intenção do governo nessa matéria, sob pena de provocar especulação, desvio de recursos e perdas para o interesse público.

Ontem, o ministro Furlan negou, no Rio, que esteja defendendo intervenção do Banco Central para elevar a cotação do dólar. No entanto, a anunciada mudança na lei do câmbio altera, sim, o volume de moeda estrangeira no mercado e, portanto, sua cotação.

Não se trata de saber quem está certo ou quem está errado, se o Banco Central ou o ministro do Desenvolvimento. Possivelmente, o ministro Furlan tenha mais razão nesse caso. Trata-se, apenas, de evitar trombadas com certa duplicidade de política cambial.