Título: Público-privado, uma custosa mistura
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/01/2005, Economia, p. B2

O novo trem da alegria que apita na Câmara dos Deputados e pode enveredar por outras áreas do governo tem pelo menos uma utilidade. Torna mais fácil perceber um fato importante e quase sempre negligenciado na discussão política: o Estado brasileiro não é grande, é apenas caro, muito caro. Num país com padrões democráticos mais elevados, seria possível obter o mesmo serviço público por um preço mais baixo, ou serviços muito mais amplos e também melhores pelo mesmo custo. Serviço público, neste caso, inclui não só as tarefas típicas do Executivo, mas também a atividade legislativa e a função judicial. Ponham de lado a indignação, por um instante, e perguntem simplesmente para que um deputado precisa de até 20 funcionários em seu gabinete - ou de até 25, número previsto em projeto de resolução que os parlamentares deverão votar em fevereiro.

Comparem a produção média dos gabinetes da Câmara com a de escritórios privados de advocacia, de contabilidade ou de consultoria. Em seguida, comparem o número de funcionários, suas horas de trabalho e a qualidade do produtos. Comparem a cobrança a que está sujeito o prestador de serviços, no setor privado, com a vigilância efetivamente exercida sobre o parlamentar.

Neste ano, a Câmara quase nada produziu durante dois meses, na época das eleições municipais. Os deputados não precisaram, para abandonar suas funções, de autorização especial dos eleitores. Apenas decidiram que não poderiam trabalhar como legisladores, nesse período, e passaram a dedicar-se aos interesses de sua carreira política. Esses interesses, é bom não esquecer, são antes de mais nada privados.

Também esta distinção é importante, mas quase nunca lembrada. Cabe ao cidadão custear as despesas necessárias ao cumprimento das funções de governo, como os serviços de segurança, educação, saneamento, assistência médica, legislação, solução de conflitos e assim por diante. Cabe-lhe pagar os investimentos em transportes, energia e telecomunicações, se essas áreas forem de responsabilidade pública. Mas por que lhe caberá, também, custear as ações que interessam estrita ou principalmente à carreira política dos indivíduos em função pública?

Alguém já perguntou para que servem os escritórios políticos mantidos pelos parlamentares em seus Estados? Os deputados têm direito, hoje, a verbas de R$ 15 mil mensais para manter esses escritórios. Qual o fundamento desse direito? Em que medida isso atende ao interesse público mais do que às conveniências de carreira do parlamentar?

Continua a haver uma enorme confusão, na vida política brasileira, entre o público e o privado. Talvez nunca se estabeleça, na prática, uma distinção precisa e utilizável em todas as circunstâncias. Uma decisão de evidente interesse público - uma lei que favoreça, por exemplo, o aumento da produtividade agrícola - pode resultar de uma articulação inspirada no mais puro clientelismo. Mas a distinção é possível em grande número de casos e é indispensável à avaliação da vida política.

Não há a mínima evidência de que as facilidades concedidas aos parlamentares, com dinheiro do contribuinte, atendam prioritariamente ao interesse coletivo. Não há por que admitir sem discussão, por exemplo, que escritórios políticos nos Estados sejam mantidos com recursos públicos e não com dinheiro dos partidos. Se um partido tem representantes no Congresso, deve ter uma base eleitoral suficiente para custear escritórios adequados. Interesses partidários, convém não esquecer, são interesses parciais - de grupos ideológicos, de classes, de clientelas profissionais ou regionais etc. Não se confundem com os interesses do Estado.

Se as pessoas fossem mais atentas a distinções desse tipo, seriam mais severas na avaliação dos gastos públicos. Dariam maior importância à relação entre os resultados e os custos. Perceberiam mais claramente, por exemplo, que o que justifica os impostos não é a manutenção nem a criação de empregos públicos, mas a realização de certas funções que atribuímos ao Estado. Se a prioridade é o cumprimento dessas funções, é no resultado que os cidadãos devem concentrar sua atenção. Certas condições políticas e administrativas são necessárias, é verdade, para o bom funcionamento do sistema. A liberdade e a segurança dos cidadãos dependem, por exemplo, de certas garantias concedidas a juízes, parlamentares e outros servidores. A observância dessas garantias complica a avaliação de como operam as instituições e seus representantes. Complica mas não impede o bom julgamento. Também por isso o discernimento é indispensável: as prerrogativas se justificam por serem necessárias ao bom funcionamento das instituições públicas e não por servirem aos objetivos particulares dos servidores de cada ramo do poder público.