Título: Os limites do nosso mar
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Não é apenas com tsunamis que o mar está fazendo o mundo perder o sono. A cada semana surge um novo relatório dramático sobre a situação dos oceanos, fonte de boa parte da alimentação no mundo (média de 16 quilos por habitante/ano; no Brasil, 7 quilos anuais por pessoa, em média, ou 8% do consumo de carnes em geral).

Ainda em novembro último, uma coalizão de países tentou, no âmbito da ONU, uma moratória para a pesca de arrasto em águas internacionais, que tem provocado efeitos devastadores sobre a biodiversidade marinha. O Brasil foi a favor da moratória, mas ela não passou, por causa da oposição dos países donos das maiores frotas pesqueiras. Na Grã-Bretanha, uma comissão intergovernamental está propondo que se feche à pesca comercial um terço das águas territoriais, para que essa área passe a ser protegida como reserva natural marinha - por causa também da sobrepesca e da poluição. Uma das preocupações maiores - não apenas ali - é com a sobrepesca de espécies de pequeno porte, para alimentar "fazendas" de criação de salmão, onde o farelo e óleo de peixes de pequeno porte chegam a responder por 80% da alimentação dos salmões.

Boa parte da pesca no mundo se faz com subsídios governamentais, que, segundo o Banco Mundial, já superam US$ 15 bilhões anuais. Graças a esse e outros estímulos, o consumo mundial dobrou em 30 anos e já passa de 100 milhões de toneladas anuais, com o valor de exportações já próximo de US$ 60 bilhões/ano. Mas a pesca, além da capacidade de reposição dos oceanos, já levou ao esgotamento de 50% dos estoques, enquanto outros 25% estão no limite; 70% das espécies de mamíferos estão ameaçadas de extinção.

No Brasil o panorama não é menos preocupante, como já se expôs neste espaço (23/4/2004), com a agravante de que se desenvolve um programa de estímulo à pesca que os cientistas da área consideram "muito preocupante", bastante além das possibilidades das nossas águas. Pretende-se com ele aumentar a pesca de espécies oceânicas em 50% e chegar o consumo anual a 12 quilos por habitante/ano. Para tanto se criaram financiamentos de R$1,5 bilhões para a frota pesqueira, reduziu-se em 20% o preço do óleo combustível e um decreto abriu áreas públicas ao cultivo do camarão.

Em 27 de novembro último, matéria assinada neste jornal por Herton Escobar reiterou as advertências dos cientistas, em carta por eles dirigida ao secretário especial de Aqüicultura e Pesca. Assinado por representes do Instituto Oceanográfico da USP, do Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar da Univali, da Uerj, da Furg, do Instituto de Pesca de São Paulo e do Ibama, o documento detalhou a situação preocupante das principais espécies pescadas na Região Sudeste-Sul do País e diz que eles "não têm conseguido ser ouvidos nem pela Seap nem pelo Ibama". Segundo esse estudo, "os recursos em uso já estão quase todos sobreexplotados e os denominados 'novos' pelo governo não têm qualquer condição de sustentar a frota planejada".

A única resposta que parecem haver tido - e mencionada nessa última matéria -, do subsecretário de Desenvolvimento da Pesca da Seap, reconhece que há "muitas espécies em situação delicada". Mas contrapõe um único exemplo - o da sardinha, em que, com o respeito a um período de defeso de seis meses, se conseguiu aumentar a produção, de 18 mil toneladas em 2002 para 70 mil toneladas este ano.

É pouca resposta para um documento tão contundente, que considera uma "estratégia equivocada" construir mais de 500 embarcações de pesca de médio e grande porte "sem revisão dos fundamentos técnicos", já que "há pouca possibilidade de expansão do setor".

O documento, além de detalhar a situação de cada uma das espécies, afirma:

Antes de executar qualquer plano de expansão da pesca, é preciso conceber e implantar planos de manejo para cada uma das espécies;

"mesmo recursos promissores, localizados nas áreas mais profundas, já mostram sinais alarmantes de sobreexplotação após três ou quatro anos de expansão pesqueira, demandando reduções imediatas nos níveis de captura";

"a insistência em políticas inconsistentes levará a uma situação semelhante àquela ocorrida nos anos 70, quando, sem fundamentos técnicos, foi incentivado o desenvolvimento do setor pesqueiro no país, a partir de metas ilusórias, trazendo em conseqüência um desastroso processo de desativação de embarcações, fechamento de indústrias de processamento de pescado e depleção dos estoques."

Por todas essas razões, além de se porem à disposição do governo para repensar a questão, os cientistas propõem que pelo menos se definam as áreas de exploração e áreas de preservação, com o conseqüente manejo da pesca. Dizem também que "mais importante que a expansão das pescarias deve ser o aproveitamento dos recursos que são descartados a bordo e no processamento do pescado, plenamente aproveitáveis, e que compensariam, em parte, as limitações de capturas" (no mundo, a média do pescado que se descarta, por considerar que não tem mercado, é da ordem de 20% do total; o Brasil não é exceção).

É um diagnóstico pesado, que parte exatamente das instituições e dos cientistas que têm o conhecimento da área. Não pode continuar sem resposta. E não se pode seguir levando adiante um projeto absolutamente insustentável. Também neste caso, uma lógica supostamente econômica - mas que desconsidera todos os outros fatores - não se pode sobrepor. Até porque, ao final, o resultado será o esgotamento do capital natural, mais uma vez transformado apenas em capital financeiro.