Título: Democracia - a luz que nasce do caos
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Desde o início do Segundo Reinado (1840) até os dias de hoje, pode-se dizer que a instituição central do poder, no Brasil, tem sido o Congresso Nacional. Por mais de um século e meio, passando pelo Império e pela República, ele só permaneceu fechado durante os oito anos do Estado Novo (1937-1945) e por curtos períodos no regime militar. Com exceção de Vargas, nenhum governante, por mais forte que fosse, ousou exercer o poder sem o seu respaldo.

Essas afirmações, à primeira vista, parecem surpreendentes. Os parlamentares, em geral, nunca contaram com a estima, o respeito ou a boa vontade da opinião pública. Políticos são mal vistos em todo o mundo, desde que o mundo é mundo. Mas, como na fábula das abelhas, de Mandeville, a soma dos vícios individuais acaba resultando em benefícios coletivos. Raros são os políticos dotados de verdadeiro espírito público. Isso implicaria desapego, renúncia e desprendimento. O pesado jogo do poder exige de seus participantes as características opostas. Um político eficiente há de ser, necessariamente, ambicioso, dissimulado, amoral, incoerente e desprovido de maiores escrúpulos. Os melhores aços são os forjados sob os fogos mais fortes. Mas o que acontece quando indivíduos assim são levados a competir entre si na arena política? Cada um defende os seus próprios interesses ou os interesses do segmento social que o elegeu. Dá-se um gigantesco combate de todos contra todos e a resultante disso é o máximo denominador comum entre os diferentes anseios da sociedade. A virtude pública nasce do confronto entre os vícios individuais. Essa é a virtude maior da democracia. Mas para que o jogo funcione é necessário que haja sempre um relativo equilíbrio de forças entre os seus participantes. O poder tem de ser, necessariamente, fragmentado. Ninguém pode, em momento algum, deter uma fatia de poder tão grande que lhe permita impor sua vontade aos demais. Todos os interesses têm de ser, obrigatoriamente, negociados. Cada um deve ser acomodado de forma a compatibilizar-se com o restante do conjunto.

Eu não entendia bem tudo isso até que assumi o meu primeiro mandato como deputado federal.

A experiência, de início, é frustrante. Os deputados novatos, sem exceção, acreditam todos que vão revolucionar o Congresso. Qual não é a sua decepção ao perceberem que, além de si próprio, existem mais 512 deputados e 81 senadores que pensam da mesma forma. O real poder de cada um é insignificante. Os veteranos contam com a vantagem de, ao menos, estarem familiarizados com as inúmeras regras que compõem o Regimento Interno. Três meses após o início da legislatura, já existem pelo menos uns 2 mil projetos de lei aguardando tramitação, sendo a grande maioria apresentada pelos calouros. No final do primeiro ano, apenas uma dezena deles se terá transformado efetivamente em lei. Nem assim os seus afortunados autores têm motivos para regozijos. Da apresentação à aprovação, as suas propostas passaram pelo crivo de, no mínimo, três comissões permanentes, em cada uma das quais o projeto é modificado e distorcido a ponto de se tornar irreconhecível para o seu proponente inicial.

O deputado termina o seu primeiro ano de mandato totalmente desiludido: a que vim, afinal? Minhas importantíssimas propostas caíram todas por terra! De cada dez projetos em que votei, no plenário, em nove eu não tinha a menor idéia do que se tratava! Votei de acordo com a orientação do líder de minha bancada, o único, no partido, que parecia entender de tudo. Nessa Casa, quem manda de fato são os líderes de bancada!

Os líderes, por sua vez, embora se façam parecer oniscientes e poderosos, no seu íntimo não têm a mesma convicção. Eles bem sabem que, na maioria das votações, eles também não têm conhecimento suficiente sobre o mérito das propostas apresentadas. São as suas assessorias parlamentares que elaboram os pareceres com os quais eles orientam os votos de suas bancadas. Bons repentistas que são, eles improvisam argumentos convincentes para defender os pareceres e os apresentam como sendo seus. Os deputados que já tiveram a oportunidade de liderar bancadas sabem, mais do que ninguém, que o processo legislativo não tem donos. Ele resulta da elaboração coletiva. Uma proposta de lei, até chegar ao plenário, passa pelas mãos de dezenas ou mesmo centenas de deputados. Cada um trata de incluir ou excluir alguma coisa do projeto original, para que fique de acordo com os interesses que defende. Ao final do processo, antes de ser levado à votação, o projeto ainda é negociado entre as lideranças partidárias, de forma a que se torne aceitável para a maioria dos interesses em jogo.

Tudo isso parece caótico. O surpreendente é constatar que, ao fim e ao cabo, esse complexo sistema funciona!

Embora muita bobagem seja apresentada por cada um dos deputados e senadores, dificilmente sai alguma besteira, em forma de lei, do Congresso Nacional. A confrontação e a interação das idiossincrasias individuais acabam por resultar na sabedoria coletiva. As leis aprovadas podem não ser as ideais, mas, com certeza, são as politicamente possíveis, levando em conta a conjuntura e o conjunto de valores aceitos pela maioria da sociedade.

Os políticos, individualmente, estão longe de ser perfeitos. Mas o Congresso, como somatório dos inúmeros interesses divergentes, chega ao menos próximo do que se entende por perfeição.

Esse é o maravilhoso espetáculo da democracia.