Título: Ser patriota e saber inglês
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2005, Economia, p. B2

As opiniões se dividem quanto ao novo avião presidencial e à reforma do exame de admissão à carreira de diplomata, em meio ao usual torpor que acomete o País entre as festas de Natal e o carnaval. No fundo, os dois temas, que pareceriam triviais, estão relacionados a assuntos de primordial importância para definir o desempenho futuro da economia brasileira. De um lado, a ênfase no controle de gastos públicos, tornada imprescindível pelo esgotamento das possibilidades de aumento da carga tributária. De outro, a abrangência das limitações que vêm marcando a ação da diplomacia brasileira nos últimos dois anos e só agora começam a ficar mais evidentes. Se a preocupação dos críticos é com o exemplo a ser dado pelos hábitos de consumo do presidente, faz muito mais sentido centrar a atenção no uso indevido de recursos públicos em benefício próprio ou de familiares - como parece ter ocorrido recentemente - do que sistematicamente colar o nariz nas contas palacianas e compará-las ad nauseam com o número de miseráveis no País. A tentativa de tornar o presidente alvo de chacota por causa da decisão de comprar um novo avião para seu uso é algo pueril. Na essência, não parece absurdo pensar que a dignidade do cargo presidencial requeira meio de transporte diferente do que se adotava anteriormente. Chefes de Estado de países da liga do Brasil usam aviões equivalentes. Cabem dúvidas se o substituto do Sucatão correspondeu ao gasto de pior qualidade que se fez desde a posse de Lula. Para acreditar nisso é preciso fazer vista grossa para muitas das distorções que afetam o gasto público no Brasil hoje - aposentadorias régias, acumulações indecentes, transferências injustificáveis, investimentos desnecessários -, para aceitar o udenismo recauchutado que grassa em relação ao avião. Um exercício sério de revisão dos gastos públicos no Brasil nos próximos anos pouco tem que ver com o avião do presidente. Necessariamente passará por sucessivas reformas do setor público e da Previdência. Pela redução dos encargos da dívida pública à medida que caia a relação dívida-PIB e, com ela, a taxa de juros. E pela melhoria da qualidade do investimento público e das regras de atração de investimentos privados em infra-estrutura.

A fragilidade das críticas ao Airbus presidencial fica, entretanto, muito relativizada quando comparada à mais recente manifestação "nacionalista" originária do Palácio dos Arcos. Decidiu-se que o exame de inglês não será mais eliminatório nas provas de admissão à carreira de diplomata. A exigência teria sido eliminada por conta de suas implicações elitistas, que estariam acarretando a reprovação de candidatos com sólidos conhecimentos em outras disciplinas. Houve mesmo a sugestão de que a exigência estaria causando a eliminação de candidatos de famílias de baixa renda e, portanto, com poucas oportunidades de estudar línguas. E há, pairando no ar, a idéia de que, de algum modo, a intimidade com o inglês poderia acarretar certa erosão do grau de patriotismo desejável nos funcionários da carreira diplomática.

É memorável o sarcasmo de Lima Barreto, nas Aventuras do Doutor Bogoloff (Expressão e Cultura, 2001), ao narrar o diálogo do ministro Xandu com o doutor Bogoloff. "Fala inglês?", perguntou o ministro. "Não, Excelência", respondeu o doutor. Ao que respondeu o ministro: "Eu falo. Desde que o falei com desembaraço, as minhas faculdades aumentaram. Penso em inglês, daí me veio uma salutar reação mental que me interessou todo inteiro. Gosto muito do inglês, com o sotaque americano." Não é preciso acreditar inteiramente no ministro Xandu, mas saber inglês perfeitamente é requisito essencial à formação de todo diplomata no mundo atual. Em qualquer país. Saber inglês não está relacionado inversamente ao patriotismo. Não precisa ser com "sotaque americano", nem mesmo figuradamente.

A decisão do Itamaraty parece singularmente questionável num momento em que a literatura especializada em crescimento econômico ressalta as vantagens de economias como as da Índia e da Irlanda, que crescem rapidamente beneficiando-se do uso da língua inglesa por pelo menos boa parte das suas populações. Em contraste, o governo poderia incentivar a melhoria do ensino de inglês e de outras línguas nas escolas brasileiras. Não é impossível que as implicações práticas da mudança itamaratiana sejam irrelevantes. Mas a importância é emblemática, com seus laivos de nacionalismo exaltado. É um clima que lembra os excessos do xenófobo major Quaresma, para lembrar outro personagem barretiano.

Seria muito mais útil o abandono da atual pasmaceira principista e que a diplomacia comercial tratasse de alcançar resultados tangíveis na forma de ampliação de mercados de exportação e de maior abertura do mercado brasileiro às importações. As perspectivas não são alentadoras: mesmo nos mais altos escalões persistem ilusões de que o Brasil poderá extrair concessões relevantes quanto ao acesso a mercados de exportação sem ampliar de forma significativa suas concessões em relação a outros temas. Avanços na diplomacia comercial, combinados com cortes de gastos públicos mais relevantes que o do avião de Lula, poderiam contribuir para viabilizar um novo modelo de crescimento sustentado. Desde que o governo continue a resistir à avalanche de críticas à política monetária que não são mais do que variações do argumento de que, afinal, pensando bem, seria melhor ter um pouco mais de inflação.

*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor-titular do Departamento de Economia da PUC-Rio