Título: Malandragem perde Bezerra da Silva
Autor: Adriana Del Ré
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/01/2005, Caderno 2, p. D5

E o morro está de luto. Um de seus maiores representantes, o cantor e compositor Bezerra da Silva, se calou. O sambista nunca mais vai expor a vida real da favela carioca: do malandro que foi dedurado por um defunto, da mulher que traiu o marido, da polícia no encalço do ladrão, daquele que passa fome. Tudo com uma crueza e humor próprios de um cronista do cotidiano, de um repórter da marginalidade. Internado desde o dia 28 de outubro no Hospital do Servidor Público do Estado, na região central do Rio de Janeiro, Bezerra morreu na manhã de ontem, vítima de problemas pulmonares, oficialmente aos 77 anos. Oficialmente porque, segundo ele próprio contou, existia uma diferença de datas no registro de nascimento, um feito pela mãe e outro, pelo pai. Por isso, ele nunca soube ao certo que idade tinha. O corpo de Bezerra da Silva foi velado ontem à tarde no Teatro João Caetano, no centro do Rio. O enterro será hoje, às 11 horas, no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Nascido no Recife, em Pernambuco, Bezerra da Silva foi criança pobre que, aos 8, 9 anos, já tocava zabumba e cantava coco. Aos 15 anos, partiu para o Rio, fugido da fome e em busca da sobrevivência. Na nova cidade, foi trabalhar na construção civil e se tornou pintor de paredes. Naquela época, seu pai - que só veio a conhecer já "homem feito" - vivia havia anos no Rio (ele havia abandonado a família em Pernambuco, quando Bezerra era pequeno, para tentar a sorte em outro lugar).

Logo que chegou ao Rio, Bezerra da Silva foi morar no Morro do Cantagalo, onde viveu por 15 anos. Segundo o sambista, ele só se mudou por causa dos filhos, mas, se pudesse, continuaria por lá, onde os moradores não tinham duas caras. No início, foi se adaptando, aprendendo o samba, o partido-alto. Dizia que já nascera com o dom da música, por isso a facilidade com os ritmos.

No percalço do reconhecimento, amargou períodos difíceis. Mas assegurava que nunca contou com a ajuda de ninguém. Só começou a cantar profissionalmente nas rádios a partir de 1967. Trabalhou com Jackson do Pandeiro, fez parte da orquestra da Globo, mas foi com Genário, do grupo Nosso Samba, que encontrou o sucesso. Fizeram o primeiro disco, Partido Alto - Nota 10 - Genário e Bezerra da Silva, em 1978, e, no segundo álbum da série, o sambista estourou de vez com o partido-alto Pega Eu, Que Eu Sou Ladrão.

Na discografia, saíram pérolas como Malandragem Dá um Tempo, Seqüestraram Minha Sogra, Overdose de Cocada e Piranha, entre outros. Em 95, com Moreira da Silva e Dicró, gravou Os Três Malandros in Concert, uma versão bem brasileira do show dos três tenores Pavarotti, Domingo e Carreras. Em 1998 virou tema de livro, Bezerra da Silva - Produto do Morro, de Letícia Vianna.

EVANGÉLICO

Era na linguagem coloquial, repleta de gírias, na irreverência e no teor de suas canções/histórias, que ele conquistava a identificação do povão. Para Bezerra, não existia lógica um sambista do morro cantar romances ou vida boa. E ficava indignado quando ouvia falar que ele fazia música de protesto ou revolta, quando, na verdade, retratava nada além da verdade. "Não sou cantor de elite nem tento enganar o povo com letras de amor", desabafou ele em entrevista ao Estado, em 2003, quando divulgava o CD Meu Bom Juiz, o último de sua carreira.

Apesar do sucesso - mesmo quando suas músicas saíram da favela e desembocaram na zona sul carioca -, o compositor não deixou de subir o morro, ir ao encontro de compositores de talento e formar parcerias com engraxates, pedreiros, camelôs, desempregados. Influenciou não apenas sambistas, mas artistas do pop-rock, como Barão Vermelho, O Rappa, Marcelo D2, entre outros. O Barão fez sucesso com sua regravação de Malandragem Dá um Tempo. Em Sangue Bom, D2 o homenageou: "Como diz o meu parceiro Bezerra da Silva/ Eu não preciso fazer a cabeça/ Eu já nasci com ela / A questão é... até onde que ela pode me levar / Se é que ela pode me levar."

Bezerra se convertera evangélico havia cerca de três anos, o que deixou os fãs surpresos. Ele, que já havia feito sucesso com músicas como Eu não Sou Santo, afirmou que não deixaria de cantar suas crônicas bem-humoradas sobre a malandragem, mas tinha em seus planos gravar um disco de sambas só com letras de teor religioso. Com a mulher, Regina do Bezerra, como ele a chamava, o compositor era freqüentador ferrenho de igreja. Era um malandro sem papas na língua, com um jeito de falar que podia beirar o rude, mas de bom coração. Neste momento, ele deve estar fazendo a alegria da malandragem em outras estratosferas.