Título: Canal das águas
Autor: Lúcio Alcântara
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Há 50 anos, o professor cearense Joaquim Alves percorreu parte do Nordeste como inspetor regional de Ensino. A experiência encorajou-o a lançar o livro História das Secas, em que fez um levantamento minucioso das estiagens, listando-as cronologicamente desde o século 17. Com isso procurou combater figurões como Washington Luís, o último presidente da República Velha, que dizia conhecer o Ceará apenas pelo romance Iracema.

Já nos anos 1950 a literatura nacional sobre as secas nordestinas era tão caudalosa quanto fragmentária. Joaquim Alves, citado ao acaso, foi um dos muitos que se debruçaram sobre o tema, tratado geralmente com excessos sentimentais e pouca fundamentação científica.

Os historiadores contam, e muita gente sabe, que dom Pedro II jurou vender até a última jóia da Coroa para solucionar a questão nordestina, comprovando apenas que os flagelos não se resolvem com belas frases.

Por outro lado, há muitos anos a açudagem também deixou de ser vista como uma panacéia para os humores do clima. A construção de barragens e grandes reservatórios, por si só, se mostrou incapaz de assegurar o progresso do meio rural e dinamizar a economia das regiões secas.

Hoje há a consciência de que, além da acumulação da água, é preciso uma política de gestão dos recursos hídricos, com medidas estruturais e a interligação de bacias, num esforço conjunto e extraordinário dos governos municipais, estaduais e federal.

O Ceará, que tem 97% do território localizado no semi-árido, tem muito que ensinar a respeito. Desde 1987 a Política Estadual dos Recursos Hídricos adota os princípios básicos de descentralização, integração e participação comunitária, para garantir que a água seja usada de forma racional pela sociedade, representada nos Comitês de Bacias Hidrográficas.

Esses comitês decidem, por exemplo, sobre a quantidade de água a ser liberada das barragens após cada inverno, pois a irregularidade das chuvas e a intensa evaporação prejudicam a perenidade dos rios.

Afora isso, os investimentos em infra-estrutura hídrica continuam sendo fundamentais. No último dia 17 de dezembro o governo do Estado inaugurou o primeiro trecho do Canal da Integração, que vai transportar as águas do Açude Castanhão, no município de Nova Jaguaribara, a pontos distintos do interior.

A obra vem impulsionar a agricultura irrigada, consolidando o Agropólo Baixo Jaguaribe como uma região produtora e exportadora de frutas. Além disso, o abastecimento da população da Região Metropolitana de Fortaleza e das comunidades ao redor da obra estará garantido nos próximos 30 anos, mesmo em períodos de estiagem.

Ao todo, o Canal da Integração terá 225 quilômetros de extensão. É o maior canal construído em concreto no País. Ao final do longo percurso, terá passado por 12 municípios, irrigando pelo menos 33 mil hectares e garantido água para o Complexo Industrial do Pecém e três distritos industriais (Maracanaú, Horizonte e Pacajus).

Mais que uma obra necessária, o Canal da Integração é a prova de que estamos acertando no sistema de integração de recursos hídricos, desenvolvido de forma planejada há 15 anos, com a construção de açudes, canais, estações de tratamento, adutoras e poços profundos, que se comunicam por todo o Estado. Esse sistema leva a água das regiões úmidas para as zonas secas. Por causa disso o Ceará tem hoje 2.600 quilômetros de rios perenizados.

Quando a segunda e a terceira etapas do Canal da Integração estiverem concluídas, o Ceará será o primeiro Estado em condições de receber as águas provenientes da transposição do Rio São Francisco, uma antiga reivindicação nossa e de Estados vizinhos.

É possível investir em grandes obras estruturais de forma planejada e responsável, sem gastos desnecessários nem danos ao meio ambiente. Há décadas estudos são feitos acerca do desvio e aproveitamento de uma pequena parte das águas do Velho Chico, que não sofreria com as obras. Agora, é hora de unir as possibilidades técnicas com a vontade política.

Como numa gangorra que oscila entre diferentes pesos, o Brasil alterna dados excepcionais com números absolutamente pífios. Em razão dos péssimos resultados referentes a saneamento básico e acesso à água potável, o País dificilmente vai atingir a meta de redução da pobreza extrema até 2015, compromisso que assumiu ao assinar a Declaração do Milênio, juntamente com 189 países.

Por isso, a distribuição da água em todo o território nacional é assunto que diz respeito a todos nós. No mais, estamos ampliando o debate político e fomentando a criação de redes de parlamentares nos vários Estados brasileiros e municípios do semi-árido, a fim de acompanhar e implementar o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN), que conta com o envolvimento dos vários ministérios, instâncias governamentais e da sociedade civil.

Pesquisas e experiências desenvolvidas nas últimas décadas comprovam que a aparente hostilidade do semi-árido é propícia a atividades lucrativas como a fruticultura, aqüicultura, ovinocaprinocultura, apicultura, produção de oleaginosas (mamona, amendoim, gergelim, girassol), além do beneficiamento de riquezas minerais, do turismo ecológico, esportivo e religioso e da exploração do artesanato.

Ceará, Pernambuco, Piauí, Bahia, Maranhão, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe, Espírito Santos e Minas Gerais estão juntos nessa luta. O PAN, juntamente com medidas sérias de integração hídrica, pode levar o semi-árido brasileiro a um novo modelo de desenvolvimento, com base na redução da pobreza e das desigualdades sociais, na ampliação da capacidade produtiva e na proteção ambiental. Obras como o Canal da Integração e a transposição das águas do São Francisco são fundamentais para que sonhos antigos se transformem em realidade.