Título: Desafios à mobilidade
Autor: Francisco Macena
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

No editorial Desrespeito ao rodízio (Estado, 5/1, A3) ficaram evidenciadas, pelas avaliações feitas pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), a quase saturação das medidas e a crescente desobediência à restrição de circulação de veículos. O jornal é categórico em afirmar que o "rodízio capengou de vez", o que é inconteste pelos números apresentados pela CET. Outra verdade é que hoje também não temos nenhuma outra medida capaz de diminuir os impactos na cidade do crescente aumento da frota, que já beira os 5,6 milhões de veículos. Dados da CET de 1999 apontam que os automóveis representam 86,65% do volume de veículos no horário de pico; os ônibus, 4,7%; os caminhões, 2,5%; e as motos, 6,2%.

Nos últimos 25 anos, a taxa de motorização passou de 6 habitantes/veículo para 2 habitantes/veículo, o que demonstra que o problema do trânsito em São Paulo é crescente e bem superior à capacidade do sistema viário. Outra constatação do editorial é que "os investimentos em transporte público ficaram aquém do necessário" - infelizmente, uma verdade histórica, de vez que sucessivos planos deram prioridade ao transporte individual em detrimento do transporte coletivo, levando a uma política de exclusão de boa parte da população do acesso ao transporte coletivo. Para se ter uma idéia do tamanho desta exclusão, pesquisa de 2002 da extinta Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano (Sedu) do governo federal, realizada em dez cidades brasileiras, mostrou que as classes D e E, que constituem 45% da população urbana e são dos principais segmentos demandatários do transporte coletivo, representam apenas 25,5% dos usuários dos ônibus urbanos e 18,5% do metrô.

Outra pesquisa, coordenada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que 56 milhões de brasileiros não têm dinheiro para pagar a tarifa do transporte coletivo. Esta tendência excludente é tão grave que a pesquisa Origem/Destino do Metrô-1997 demonstra que o índice de mobilidade da população, em dez anos, caiu de 10% a 14%, dependendo da faixa de renda considerada, enquanto no mesmo período a população cresceu 8%; os empregos, 15%; e a taxa de motorização, 25%.

Para combater essa exclusão é necessária uma política séria de investimentos no transporte público, principalmente aumentando a rede de metrô, hoje em torno de 57 km, mas, como o próprio Estado reconhece, devido ao alto custo (cerca de U$ 90 milhões por quilômetro) e pelo seu longo tempo de execução, essa solução não se apresenta a curto prazo. Neste cenário, o transporte de alta capacidade precisa ser repensado e a intermodalidade deve assumir relevância estratégica, colocando o sistema sobre trilhos como o articulador de uma rede metropolitana integrada. Os avanços obtidos no sistema sobre pneus na última gestão devem ser considerados, assim como os Passa-Rápidos, que trouxeram um ganho substantivo no tempo de deslocamento e na velocidade comercial dos ônibus, até porque teremos, por muitos anos, o transporte sobre pneus com um peso considerável no número de pessoas transportadas.

No entanto, mesmo estas melhorias, que esperamos ver ampliadas, encontram um limitador na própria característica do nosso sistema viário. Assim, é necessário pensar em alternativas que, mais do que paliativas, como é o caso do rodízio, possam apresentar-se como uma política de gestão da mobilidade. É justamente como parte de uma política geral que se inclui um plano de circulação de bens, mercadorias e serviços, que poderia ter como uma das medidas, como levanta o Estado, a entrega programada noturna. Chegam diariamente a São Paulo pelas rodovias cerca de 72 mil caminhões e 16% deste volume,12 mil caminhões, ocupa 42% do espaço viário da cidade. A grande maioria dos veículos de carga transita no minianel no período diurno, o que faz o sistema operar no limite de sua capacidade das 6 às 20 horas. Por outro lado, percebe-se que das 20 às 6 horas o sistema apresenta cerca de 78% de ociosidade.

Outra questão importante é repensar a relação da cidade como os pólos geradores de tráfego, inclusive a lei que regula a sua implantação, a partir de uma política efetiva estimulada pelo poder público que leve à descentralização administrativa e econômica da cidade, diminuindo, assim, a distância entre a moradia e as atividades de trabalho, educação, saúde e lazer. De 1989 a 2002 foram cadastrados 1.049 pólos geradores de tráfego, cuja área construída corresponde a 25.796.064,91 metros quadrados. Estes pólos estão assim distribuídos por áreas: serviços, 35%; comércio, 26%; institucional, 20%; residencial, 13%; e industrial, 6%. Mais de 80% dos empreendimentos de serviços e comércio estão concentrados nas Subprefeituras de Pinheiros, Sé, Santo Amaro e Vila Mariana, o que torna essas regiões, que já têm um sistema viário saturado, pólos de atração de mais viagens.

A gestão da mobilidade tem de tocar em pontos cruciais para garantir a cidadania plena e direitos, às vezes desprezados, como o da acessibilidade. É preciso consolidar as redes de circulação a pé, reforçar as medidas de proteção e segurança no trânsito, valorizar o espaço público e as funções urbanas, inserir o sistema de transportes numa política ambiental e dar ao tema tratamento cooperativo na Região Metropolitana. Garantir a mobilidade certamente é ir além da integração transporte-trânsito, apesar da urgência dessa integração. Será preciso adotar medidas capazes de incluir no sistema grande parcela da população excluída desse direito.

Questões espinhosas na esfera dos diversos níveis de governo, como o financiamento das políticas para o setor e o barateamento da tarifa (tributação do setor, gratuidades, custo do sistema), devem ser corajosamente enfrentadas, pois a mobilidade é um importante indicador de desenvolvimento econômico e social e uma equação urbana que exigirá empenho de gestores e administradores para ser decifrada.