Título: O cruzador dos sete ares
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2005, Nacional, p. A6

Em matéria de polêmica, a da compra do novo avião presidencial não é das mais instigantes, pois carece de conteúdo, matéria-prima essencial ao bom debate. A rigor, não vale uma missa no confronto de argumentos. Trata-se da compra de um bem público a respeito do qual se reclama do preço, comparam-se os gastos com investimentos em outros setores e nada muito além disso há a discutir se a idéia, claro, for evitar a queixa algo jeca a respeito do "chiquê" das instalações de um avião com banheira. No entanto, até apelido o avião ganhou e o governo ainda se deu ao trabalho de alimentar a piada reagindo, com indignação ao "Aerolula" aposto ao Santos Dumont de batismo. Construiu-se um daqueles dramas inexistentes, ao molde dos montados pelo PT com muita competência e a conivência do senso comum quando era oposição.

O problema tende a perder importância com o passar do tempo, mas, a exemplo do episódio da referência aos "vagabundos" da Previdência Social na época de Fernando Henrique Cardoso - que falava não dos aposentados, mas dos beneficiários das distorções da lei -, vai pairar no ambiente para uso político de acordo com a conveniência e o adversário da ocasião. Um desgaste (desnecessariamente) contratado pela presunção petista de que ao "partido do bem" tudo é permitido e todas as graças são concedidas por obra de unção divino-popular.

Considerando que boas razões, que não a de um suposto, mas - neste caso - inverossímil deslumbramento, devem existir para a decisão de comprar aquele avião e não um outro da Embraer ou então recorrer à aviação privada para o transporte do presidente, custava explicitá-las com clareza ao respeitável público?

Mas não, optou-se pela soberba no encaminhamento da questão. Pode-se argumentar a título de justificativa que o governo estava no início, embalado pelo entusiasmo e apoio popular ao exercício de qualquer providência, começando pela revogação das disposições não falemos nem do passado, mas da campanha eleitoral.

O problema é que o tempo passa e não restringe seus efeitos, antes socializa prejuízos: machuca a firmeza dos corpos tanto quanto fragiliza organismos públicos e míngua patrimônios políticos.

Sinal disso foi a desistência do governo de patrocinar a reforma das leis trabalhistas. Depois de aprovar, em 2003, a reforma da Previdência no setor público - com a ajuda da oposição, mas também muito em função do princípio segundo o qual determinadas medidas só um governo do PT poderia tomar sem ser acusado do crime de lesa-pátria -, em 2004 Lula teve de recuar da idéia de mudar a CLT porque seu salvo-conduto para renegar o passado já não era mais amplo, geral e irrestrito.

Funcionou aí a agudeza de percepção, a deferência aos fatos, ou seja lá o nome que se dê à humildade dos prudentes. Mas a lição não pode ser dada como aprendida. Outro dia mesmo o presidente Lula afirmou que a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, "não tem nada a explicar" a respeito de apagões da virada do ano porque o "povo sabe" que no governo do PT não faltará energia.

Repetiu-se, como se vê, a insubordinação às evidências verificada no caso da compra do avião, pois ainda que "o povo" nasça sabendo e, mais que isso, creia no governo acima de todas as coisas, ainda assim nada desobriga o poder público de lhe prestar todas as informações.

É assim também que se ajuda "o povo" a formar juízos independentes sem ficar, para sentir-se engajado e informado, preso à lógica de lendas como essa do poderoso cruzador de imaginários sete ares.

Duas canoas

Enquanto o Palácio do Planalto sua a camisa para domar a rebeldia do petista Virgílio Guimarães e impedir que sua candidatura à presidência da Câmara imponha derrota política ou numérica ao preferido do governo, Luiz Eduardo Greenhalgh, o senador Antonio Carlos Magalhães está tranqüilo.

Ganha em qualquer hipótese: o deputado ACM Neto está na linha de frente da campanha de Greenhalgh e João Leão, do PL da Bahia, é, digamos, enviado especial do senador ao comando do comitê eleitoral de Guimarães.

Como dizia a propaganda do banco extinto, "o tempo passa, o tempo voa...", mas tem gente que fica sempre numa boa.

O principal

Os mais experientes nas lides parlamentares não levam a sério a história de que as resistências de partidos aliados ao Planalto à candidatura de Greenhalgh sejam conseqüência do distanciamento do deputado no trato com os colegas de Casa.

Citam o exemplo de Michel Temer, que ao disputar a presidência da Câmara em 1996 tinha tanta intimidade com seus pares que se confundia e chamava de "gaiola" um deputado de sobrenome Viveiros. Foi eleito duas vezes, porque assim determinou a maioria de Fernando Henrique e seu apoio no PMDB.

A história - sabe-se lá se verdadeira - é contada para ironizar o argumento contra Greenhalgh e pontuar que não é simpatia e popularidade o que está em jogo, mas o poder de fogo e a capacidade de articulação do governo. O mais é disfarce.

Mártir

Na semana passada, a idéia defendida por alguns petistas de imposição da pena de suspensão das atividades partidárias a Virgílio Guimarães era tida como uma hipótese remota e politicamente desastrada. Isso quando ainda se supunha que o mineiro renunciaria à candidatura nesta segunda-feira. Agora, a punição, ou enquadramento, para usar o jargão adequado, já é discutida como possibilidade real.

Caso ocorra, seria a redenção política de Guimarães. Não ficaria exposto a um provável desempenho aquém do esperado, estaria consagrado em Minas, onde sua candidatura é tida como uma espécie de ato de honra estadual, e ainda posaria como herói da resistência à interferência do Planalto na disputa pela presidência da Câmara. Para seus planos de tirar de José Genoino a presidência do PT este ano na eleição direta no partido, seria o melhor dos mundos. Ainda assim, ganham espaço os partidários da solução na força bruta.