Título: OMC - o significado da candidatura Seixas
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

O mandato do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) termina este ano. São candidatos à sucessão Perez del Castillo, antigo embaixador do Uruguai na OMC; Jaya Cuttaree, ministro do Comércio Internacional de Maurício; Pascal Lamy, da França, até há pouco comissário europeu para o Comércio Exterior; e Seixas Corrêa, embaixador do Brasil na OMC. Seixas apresentou sua candidatura no encontro ministerial do Caricom de 6 de janeiro, em Georgetown, na Guiana. Em Georgetown, Seixas expôs idéias sobre as funções do diretor-geral e falou da motivação multilateral animadora da postulação brasileira. Quanto à função, Seixas com precisão observou que a OMC não é uma empresa multinacional em busca de um executivo. É uma organização internacional que deve escolher o seu diretor-geral. A OMC, noto, não dispõe de recursos para serem administrados, como o FMI e o Banco Mundial, nos quais, por isso mesmo, a dimensão da gestão tem outra relevância. O seu patrimônio são suas normas que buscam, num mundo interdependente, evitar os riscos do unilateralismo dos governos nacionais e almejam estender, de maneira generalizada, os benefícios da cooperação. As normas do multilateralismo comercial, porque se aplicam a todos, precisam ser criadas por todos. Por isso, a prática decisória da OMC é o consenso. Do consenso emana a força do vínculo jurídico do seu ordenamento. A função precípua do diretor-geral e do secretariado que ele lidera é, assim, no exercício de uma função pública internacional, colaborar com os membros na obtenção do consenso, no complexo processo decisório coletivo da organização. O consenso é um procedimento de deliberação sem recurso a voto. Baseia-se nas consultas entre os membros, propiciadoras de oportunidades para o ajuste e a acomodação negociada das posições, ensejadoras de uma decisão que não enfrenta a objeção formal de nenhum membro. O consenso salvaguarda a confiança no funcionamento da OMC como foro permanente de negociação entre seus membros. Reduz o medo de se ver vinculado por uma decisão não desejada que pode ter significativo impacto interno. Protege os grandes das maiorias de menor peso econômico. Assegura aos pequenos e médios que os assuntos de seu interesse estejam na pauta das deliberações. É por isso que a OMC, como uma organização conduzida pelos seus membros, tem dimensão democrática. Contrasta com o FMI e o Banco Mundial, que decidem, inclusive em matéria de seleção de seus dirigentes, pelos votos ponderados de seus acionistas majoritários, que são os países desenvolvidos. O processo decisório da OMC é intricado. São 148 membros com diferentes níveis de desenvolvimento e com diversificados interesses, que deliberam sobre uma heterogênea variedade de assuntos. Daí a importância de o diretor-geral operar como um facilitador do consenso na condição de um "terceiro", com responsabilidades institucionais pelo sistema multilateral do comércio. O exercício destas responsabilidades requer competência diplomática, conhecimento da organização e de suas normas, percepção das realidades do seu incessante processo negociador. É isto que habilita um diretor-geral a valer-se dos conhecidos meios de dirimir controvérsias do Direito Internacional, aclimatados às especificidades dos propósitos e da cultura da OMC: Os bons ofícios por meio dos quais reaproxima membros e proporciona novas oportunidades de entendimento; a mediação e conciliação, que também são uma extensão do processo negociador beneficiado por propostas próprias que, lastreadas no conhecimento das diferentes posições, buscam uma solução comum aceitável. Além de qualidades pessoais, a função do facilitador do consenso requer o apoio de um secretariado imparcial e tecnicamente competente, apto a elaborar estudos com avaliação de cenários e projeções dos impactos de distintas posições. Estes documentos, como o inquérito no Direito Internacional Geral, devem estar voltados para apurar a possível materialidade das situações em jogo. Em Georgetown, discutindo a postulação brasileira, Seixas também se referiu a uma perspectiva organizadora da realidade que possa inspirar confiança. Mencionou a experiência diplomática brasileira na defesa do multilateralismo comercial desde os tempos do Gatt. Falou do nosso país como um pequeno "global trader", exportador para mercados geograficamente diversificados de produtos primários e bens de alta tecnologia. Realçou, assim, a sensibilidade do Brasil para as condições prevalecentes em todos os segmentos do comércio internacional de bens e serviços. Como dizia Giovanni Botero, tratando da situação e da estratificação dos países, porque os do meio participam dos extremos, têm a sensibilidade para exercitar a virtude aristotélica da equilibrada busca do meio-termo. Esta sensibilidade é importante no momento atual. A abrangência da OMC tornou obsoletas as antigas formas de construção do consenso, irradiadas de cima para baixo, a partir dos grandes protagonistas do comércio e da economia mundial. O consenso só pode ser bem decantado a partir do meio, para cima e para baixo, como demonstrou o G-20 com a importante ação brasileira na superação, em Genebra, em 2004, dos impasses de Cancún. Neste sentido, dadas as tensões difusas e os desafios à abrangência incorporadora da OMC, a candidatura Seixas tem, no equacionamento das dificuldades contemporâneas do multilateralismo comercial, uma validade específica que nenhum dos seus concorrentes possui. Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso