Título: A estética do poder
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Espaço Aberto, p. A2
Há na biologia um fenômeno interessante chamado de mimetismo ofensivo. Explica, por exemplo, o fascínio que o louva-a-deus, aquele inseto predador que mantém as patas dianteiras levantadas, lembrando uma pessoa ajoelhada em oração, provoca nos pequenos animais que ataca. As vítimas ficam tão deslumbradas com o espetáculo que se deixam facilmente capturar. Mas nem sempre o bote é certeiro, pois os bichos desenvolvem, em contrapartida, um mimetismo defensivo, pelo qual, dissimulando-se, fogem do agressor. Fiquemos por aqui na área do comportamento irracional. Entremos noutra esfera. Nos últimos dois anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva exerceu, com competência, as habilidades de um louva-a-deus, capturando platéias, principalmente nos espaços mais lotados das arquibancadas, com uma retórica nutritivo-futebolística de fácil assimilação. Mas a mesmice do verbo (e verve) presidencial começa a cansar. As platéias, de tanto verem repetidas imagens, já não têm tanta vontade de aplaudir o orador. A fadiga ocorre principalmente por conta da aritmética enviesada que o presidente tem usado para ancorar a grandiloqüência do discurso. Na semana passada disse que o Bolsa-Família incomoda os adversários por ser "o mais importante programa de transferência de renda que nós temos em toda a América Latina". Que Lula é o principal entusiasta de seu governo ninguém duvida. É um leão rugindo em defesa de seu território. Admirável. Mas o mandatário-mor exagera. Melhor, maior, mais importante, extraordinário, termos e expressões-chave que usa a toda a carga para contraditar apurações da imprensa, precisam ser demonstrados. Exemplo: o governo investiu apenas 35,8% dos recursos do orçamento previstos em 2004, transferindo para este ano mais de R$ 6 bilhões de investimentos já autorizados e não pagos até o final do ano passado; o novo avião, que está chegando, custou (coisa de R$ 126 milhões) mais que o investimento, no ano passado, em saneamento ambiental; o programa Primeiro Emprego atingiu inexpressivo 1% da meta prometida de 250 mil empregos; outros programas sociais ficaram muito aquém dos resultados projetados. Como negar isso? Da colcha de retalhos que é a programação social do governo Lula, sobra uma retórica que está longe de exprimir o clima social do País.
Neste ponto, cabe indagar a razão por que, nos últimos dias, se deu tanta importância a aspectos da vida do presidente e de sua família. Expliquemos com uma metáfora. Almofadas de sofá costumam, depois de muito uso, encolher o volume, como se lhes faltasse enchimento. Mas a cor do estofo, quando marcante, continua tendo boa visibilidade. A imagem aplica-se ao governo petista. Na falta de densidade governamental, coisas menores passam a ganhar posições centrais. O estilo transforma-se em ação. A estética da administração, a questão da forma, acaba suplantando o plano semântico, a questão de fundo. Rapazotes dando pinotes na piscina do Palácio da Alvorada, fotos do grupo de amigos do filho do presidente em blogs da internet, fotografias do moderníssimo avião com equipamento antimíssil, já apelidado de AeroLula, têm um significado que ultrapassa a denúncia do uso particular do bem público. E nem se pode atribuir a repercussão do fato à birra da imprensa para execrar a administração petista. O que está embutido nessa sinalização de mídia é o vácuo que se instala entre governo e sociedade, algo como um campo de nuvens onde se escondem as esperanças sociais. Tivesse o governo ações substantivas e palpáveis a mostrar, o lazer da meninada nos domínios palacianos e mesmo o avião presidencial ganhariam repercussão menor. Por falta de uma boa verdade, fica-se na companhia de uma boa versão. Por falta de enchimento, sobra a coloração do sofá.
E nem se queira ver nas férias da rapaziada abuso, má-fé ou intenção deliberada de usar indevidamente bens públicos. Analisemos um pouco. Na cadeira central de mando da Nação se senta um ex-metalúrgico que passou fome. Que filho de presidente não gostaria de convidar a galera amiga para usufruir o clima inebriante dos palácios de Brasília? Adicione-se a esse sonho uma pitada freudiana, algo como a relação entre beleza, poder, juventude, desejo e classe social. Mobilidade e ascensão social mexem com a cabeça das pessoas. Freqüentemente promovem transmutação de consciências. Causam deslumbramento em pessoas que adquirem novo status. Utopias transformam-se em realidade. Não é o caso, pois, de estranhar a nova estética que veste o perfil do presidente, aí inclusos os ternos bem cortados, as gravatas com estampas da moda, as reformas nos palácios e mesmo a vontade de adquirir uma aeronave cheia de charme, luxo e conforto. O poder afrodisíaco explica por que um aviãozinho da Embraer, por mais tecnológico que venha a ser, não ganha a corrida com um Airbus estrangeiro incrementado.
O ruim dessa história, misto de fascínio e euforia, é o pedaço que mostra a autoridade máxima deixando de sentir o cheiro das vielas para se inebriar com o ar dos palácios. O poder constrói universos artificiais e governantes auto-enclausurados não sentem na pele o beliscão do povo. Um dia destes, uma criança pediu a Lula que voltasse a freqüentar as ruas. Com razão. A propósito, será que o presidente fez muxoxo quando lhe apresentaram a medida provisória que aumenta a base de calculo da Contribuição Social sobre Lucro Líquido e, ainda por cima, corrige o Imposto de Renda de milhares de empresas prestadoras de serviços, decisão que golpeia uma das maiores fontes de emprego do País? O facão tributário sob o governo do PT não apenas ficou maior, como mais afiado. Se a sensibilidade do governo para satisfazer as demandas das classes sociais fosse tão apurada quanto a que usa para encher os cofres do Tesouro, os aplausos a Lula não estariam ficando menos calorosos. Mas a administração parece olhar mais para dentro do que para fora. Vem aí, por exemplo, a reforma ministerial. A régua do fisiologismo deverá fazer o traçado. E, pelo visto, a racionalidade passará longe do processo.
Se há uma doença dos governantes, ela é a síndrome do touro. O animal que pensa com o coração e arremete com a cabeça.