Título: Reforma delirante
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Editoriais, p. A3

D epois do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), duas iniciativas destinadas a esvaziar as liberdades públicas e subordinar a sociedade a interesses de corporações, o governo apresenta mais uma proposta com o mesmo figurino dirigista. Trata-se do anteprojeto de reforma universitária que, segundo a exposição de motivos do ministro da Educação, foi concebida para "restabelecer o papel do Estado" no setor de ensino, estimular "a inovação do pensamento brasileiro", "liberar energias criadoras" da sociedade, abrir "uma nova fase no processo republicano de reflexão" (sic) e fazer da Universidade um fator de "consolidação de uma nação democrática, inclusiva e capaz de gerar emancipação social". Distribuído em cem artigos e dezenas de incisos e parágrafos, esse palavreado não disfarça os verdadeiros objetivos do anteprojeto. A pretexto de cumprir o que a Constituição determina, o anteprojeto procura converter a reforma universitária em instrumento de justiça social, por meio de "ações políticas afirmativas" e "gestão democrática das atividades acadêmicas", não se limitando com isso a abolir o princípio do mérito nas atividades universitárias. Sob a alegação de que o ensino precisa "integrar-se com a sociedade, em especial com as populações de seu entorno e área de influência", ele esvazia a autonomia da Universidade, submetendo-a, seja ela pública ou privada, ao controle de "entidades corporativas, associações de classe, sindicatos e da sociedade civil".

Atualmente, os conselhos universitários têm soberania para decidir os rumos de suas instituições. Pelo anteprojeto, como as universidades devem atender às "necessidades definidas como de interesse público (...) e em razão dos interesses nacionais", as decisões de seus órgãos colegiados terão de ser "examinadas" por "conselhos comunitários sociais". Esses órgãos serão "constituídos com a finalidade de assegurar a participação da sociedade em assuntos relativos ao ensino, à pesquisa, à extensão, administração e ao planejamento da Universidade"... "com vista à avaliação de sua efetividade enquanto instituição" (sic).

Com isso, burocratas desse ministério e líderes auto-instituídos da "sociedade civil" poderiam dar palpites na definição de currículos, projetos pedagógicos e linhas de pesquisa. O sovietismo do anteprojeto é tão explícito que o inciso VII do art. 5.º obriga os reitores a destinar instalações a entidades corporativas, para que possam exercer sua "liberdade de associação, organização e expressão". No limite, como o projeto usa e abusa do conceito de sociedade civil, se ele for aprovado, dirigentes do Movimento dos Sem-Terra, uma entidade que não tem existência formal para não ser responsabilizada judicialmente pelas invasões de terra que promove, terão a prerrogativa legal de sentar-se ao lado de reitores para discutir com eles todas as questões do ensino superior.

Além desse "participacionismo obreirista", expresso por dispositivos com redação muitas vezes ininteligível, a ponto de um artigo determinar que os planos de desenvolvimento das universidades deverão conter "os instrumentos de integração com a sociedade em geral, e com comunidades locais e regionais de sua inserção" (sic), "de modo a viabilizar pleno conhecimento público de suas atividades estruturais", o projeto prevê a criação de um Fórum Nacional de Educação Superior, para atuar "como instância de articulação" do Conselho Nacional de Educação "com a sociedade".

Como se vê, não há nada que se aproveite nesse anteprojeto que, além de pôr à mostra os objetivos ideológicos dos seus autores, também exibe a sua indigência funcional.

A singeleza primária com que expõe seus propósitos sovietizantes só tem duas explicações possíveis: ou o ministro Tarso Genro, que nunca exibiu credenciais para ocupar o cargo que ocupa, não sabe o que está fazendo, e por isso deve ser imediatamente substituído por incompetência explícita, ou sabe muito bem, e por isso também deve ser demitido por atentado, também explícito, contra a autonomia de uma instituição que, com ela, é uma garantia da perenidade da democracia, mas, sem ela, pode ser uma arma poderosíssima na mão dos seus inimigos.

É pouco provável que o presidente Lula tenha tirocínio suficiente para perceber a verdadeira natureza do projeto - como mostram as barbaridades que falou ao sancionar o programa Universidade para Todos. Mas é bom que o avisem, pelo menos, de que, se quiser evitar desgastes políticos - e vexames - como os sofridos com os projetos do CFJ e da Ancinav, terá de providenciar seu engavetamento. Voltaremos ao assunto.