Título: Libelo contra Bush
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Editoriais, p. A3

N o mesmo dia em que o New York Times revelou que a Casa Branca pressionou o Capitólio, com êxito, para não impedir a CIA de usar contra suspeitos de terrorismo técnicas extremas de interrogatório - ou seja, tortura -, a entidade americana Human Rights Watch apresentou o seu relatório anual sobre as violações de direitos humanos no mundo, condenando enfaticamente o governo dos Estados Unidos pelo que chamou de "uso sistemático de interrogatórios coercitivos" - ou seja, tortura. A crônica das denúncias de maus-tratos aos que Washington considera "combatentes inimigos" começou em 2002 com as notícias de mortes de detentos afegãos, depois da vitória sobre os talebãs. Prosseguiu com os relatos das condições degradantes em que são mantidos na base militar de Guantánamo, em Cuba, centenas de prisioneiros capturados no Afeganistão, sem nenhum amparo legal. E culminou em 2004 com as imagens dos horrores cometidos por soldados americanos no presídio de Abu Ghraib, em Bagdá.

As fotos estimularam o vazamento de informações que deitaram por terra a versão oficial de que as atrocidades eram atos isolados, merecedores de repulsa e punição rigorosa. Ficou-se sabendo, por exemplo, que em 2002 o presidente George W. Bush acolheu um parecer do assessor Alberto Gonzalez, há pouco nomeado para o Departamento de Justiça, desobrigando os EUA de conceder a presos por terrorismo os direitos - entre os quais à incolumidade física - previstos nas Convenções de Genebra sobre prisioneiros de guerra.

Bush também recebeu - e levou dois anos para rejeitar - um parecer que restringia o conceito de tortura à imposição de sofrimentos extremos. Um novo parecer, tornado público no fim do ano, rejeita explicitamente a tortura. Mas, numa sintomática nota de rodapé, ressalva que os métodos aprovados pelo governo continuam a ser legais, mesmo depois da redefinição do que é tortura. Esse o contexto em que se encaixa a reportagem de quinta-feira passada do New York Times sobre as tratativas da Casa Branca no Congresso e o libelo da Human Rights Watch.

O jornal noticiou que a conselheira de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, que assumirá o Departamento de Estado este mês, objetou enfaticamente, por escrito, a uma iniciativa que o Senado viria a tomar por 96 votos a 2, ao regulamentar as atividades dos serviços americanos de inteligência, proibindo os seus agentes de torturar ou infligir tratamento desumano a prisioneiros. O texto exigia ainda que o Pentágono mantivesse o Congresso informado das formas de interrogatório a que recorria.

Rice sustentou que a medida, afinal expurgada, daria a detentos estrangeiros proteção legal "a que não têm direito segundo a lei e as políticas aplicáveis", aparentemente alheia, também ela, ao fato de serem os Estados Unidos signatários das Convenções de Genebra, que por enquanto não denunciaram e às quais, por isso, devem ajustar as próprias leis e atos administrativos relativos a prisioneiros de guerra - que outra coisa não são os capturados na "guerra ao terror" declarada por Washington depois do 11 de Setembro.

A futura secretária de Estado não agiu solitariamente. Quando o Senado estava para votar o orçamento das Forças Armadas, o Pentágono o advertiu por escrito a não aprovar "nova legislação sobre detenção e interrogatório na guerra ao terrorismo". Diante disso, nada mais natural do que o descrédito com que são recebidas as manifestações das mais altas autoridades americanas repudiando a tortura, esvaziadas também pelo alcance, limitado a militares de baixa patente, dos processos abertos contra os torturadores de Abu Ghraib.

O documento da Human Rights Watch registra que diversos governos, como os do Egito, Malásia, Rússia e Cuba, passaram a invocar o exemplo dos Estados Unidos para ignorar direitos humanos em seus países. "De há muito os EUA se orgulham de seu compromisso com o império da lei, do seu sistema constitucional de freios e contrapesos, da independência do seu Judiciário e da sua cultura política democrática", assinala o relatório. "De há muito os Estados Unidos se viam - e em muitas partes eram vistos - como defensores eficazes dos direitos humanos no mundo, um país que pratica muito do que prega."

Hoje, conclui amargamente, "Washington não pode sustentar os princípios que viola".