Título: Adoções estrangeiras caem 46%
Autor: Fabiana Cimieri
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Vida &, p. A14

O número de adoções internacionais caiu 46% desde 1999, quando a legislação brasileira passou a ser mais rígida com os casais estrangeiros, mas continua a ser a única esperança de Daiane*, de 6 anos, ter uma família. Negra, paraplégica desde os 4 anos, quando foi atropelada por um ônibus, ela tem queimaduras em todo o braço esquerdo e parte do peito provocadas por uma panela com macarrão que o pai "deixou cair". Foi para o abrigo após ser encontrada dormindo num colchão molhado, debaixo de um viaduto, com feridas pelo corpo. Estava com a irmã recém-nascida, Samira, que hoje tem 2 anos e meio. Quando o consultor financeiro Giulio Culasseo e a mulher, Beatrice Cauli, vieram da Itália, há 15 dias, tudo indicava que as meninas tinham tirado a sorte grande. Estabilizados financeiramente e impossibilitados de gerarem filhos biológicos, como a maioria dos pretendentes, eles decidiram adotar Daiane e concordaram em levar Samira. A Justiça brasileira reluta em separar irmãos, o que muitas vezes dificulta a adoção por casais nacionais. "Adaptamos nossa casa para cadeira de rodas e já marcamos um médico especialista", disse Culasseo, que ainda mantém a esperança de adotá-las.

Daiane rejeita a mãe adotiva e reluta em confiar no pai. Fala pouco, isola-se das outras crianças, e ofende quem insiste em se aproximar. "Se ela tem todas essas cicatrizes visíveis, imagina as que não aparecem, os traumas psicológicos que já sofreu", diz a advogada Jamira Gonçalves Limoeiro, representante da agência italiana que intermedeia a adoção.

O problema começou no estágio probatório, período mínimo de 30 dias de convivência entre pais adotivos e crianças. Samira, que não era a prioridade do casal, apegou-se a eles e não desgruda de Beatrice. "O processo de adoção sempre tem surpresas - neste caso, negativa -, mas ainda vejo uma luz no fim do túnel. O casal ainda está disponível, apesar da frustração inicial", afirma Jamira.

Os estrangeiros são menos exigentes que os brasileiros. As crianças só estão disponíveis para adoção internacional depois de se esgotarem as tentativas de reintegração à família biológica e de encontrar adotantes brasileiros.

A tradição de adoção no País privilegia os recém-nascidos (71%), brancos (73%) e saudáveis (99%), segundo pesquisa do Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais, Voluntários e Organizações que desenvolvem Trabalho de Apoio à Convivência Familiar (Cecif) . "É melhor uma família estrangeira que nenhuma. Não sou contra a adoção internacional, mas é sempre um choque. Em geral, é bom", afirma a diretora-executiva da ONG, Gabriela Schreiner.

O acompanhamento da adoção mostra que os resultados positivos são maiores do que os negativos. Juliano, de 6 anos, está na Itália há dois, depois de viver um estágio turbulento como o de Daiane aqui no Brasil. Os pais adotivos chegaram a devolvê-lo ao abrigo, mas se arrependeram e conseguiram ganhar a confiança do menino, que já havia sido devolvido uma vez.

Os irmãos Mário Vítor, de 8 anos, Vinícius, de 4, e Marcos, de 7, também estão bem. Apesar de terem sido adotados por duas famílias diferentes, os casais moram em Veneza e se comprometeram a manter o vínculo entre eles. Uma vez por mês, eles se encontram para brincar.

O boletim escolar de Mário Vítor, anexado no último relatório que enviaram ao Brasil, "é mais do que positivo" e Vinícius é "sociável e seguro", segundo os psicólogos italianos. Apenas Marcos está tendo alguma dificuldade de adaptação. "Ele não gosta muito de beijo e abraço e está um pouco ansioso com o início do ano escolar. Se o crescimento físico é rápido e evidente, psicologicamente ainda se mostra um pouco inseguro e costuma inventar histórias", afirma o relatório.

POLÍTICA

A coordenadora da Autoridade Central Federal brasileira, Patrícia Lamego, responsável pela comunicação com os países, diz que a política do governo federal é reduzir cada vez mais o número de adoções por estrangeiros. Segundo ela, desde 1999, quando o Brasil ratificou a Convenção de Haia relativa à adoção internacional, "é a primeira vez que o País compila os dados" sobre isso.

Os primeiros resultados da análise, divulgados com exclusividade ao Estado, mostram que, em 2003, casais estrangeiros adotaram 355 crianças e adolescentes brasileiros. São Paulo é o principal "exportador", com 98 menores. No Acre e em Santa Catarina, não houve adoções internacionais. Sete Estados deixaram de enviar o relatório: Amazonas, Maranhão, Paraíba, Roraima, Piauí, Sergipe e Amapá. São nesses lugares, por serem mais pobres, que o trabalho de divulgar a nova legislação está sendo feito.

A Convenção de Haia, regulamentada pelos decretos n.º 3.087 e 3.174, instituiu a Autoridade Central Federal no âmbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos e criou o Conselho das Autoridades Centrais, do qual fazem parte representantes dos Tribunais de Justiça dos 27 Estados, que continuam a ser os responsáveis pela adoção internacional. A convenção estabeleceu medidas para prevenir o seqüestro, a venda ou o tráfico de crianças.

O sistema anterior, de acordo com relatório da Corregedoria-Geral da Justiça de Alagoas, tinha uma "aparência de ilegalidade". Advogados, munidos do laudo de habilitação, iam às comarcas do interior, onde sabiam que não haveria casais inscritos, e "convenciam" famílias pobres ou mães solteiras a darem seus filhos para adoção. "Ocorria o absurdo de as próprias mães, através do advogado do casal estrangeiro, requererem ao juiz a inscrição do filho no livro de crianças a serem adotadas. Era um verdadeiro comércio", afirma o documento.

"Desconheço denúncias de casos assim", diz Patrícia, acrescentando que os problemas hoje são de outra natureza. "A preocupação número 1 do ministério é garantir que essas crianças já saiam do Brasil com a cidadania do país de destino." Em algumas nações, como EUA e Noruega, esta garantia não é automática. Já houve casos de brasileiros adotados que foram deportados dos EUA ao completarem 18 anos.

Outro problema, de acordo com Patrícia, é com a regulamentação das agências intermediárias internacionais. A Convenção de Haia estabelece que elas não podem ter fins lucrativos. "Eu pessoalmente não acredito", afirma.

No final do ano passado, 4 das 28 agências que atuam no Brasil foram descredenciadas por deixarem de enviar o relatório anual de acompanhamento de adoções e gastos. Hoje, a regulamentação é feita por portarias, que não têm força de lei. Além disso, o Brasil quer ter o direito de escolher com quais agências trabalhar. Atualmente, são elas que procuram a Autoridade Central. No caso brasileiro, diz Patrícia, "há um excesso de organismos italianos".

*Os nomes das crianças foram trocados por motivos legais