Título: O médico Nobel do Terceiro Mundo
Autor: Evanildo da Silveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Vida &, p. A15

Aos 3 anos, Jorge Kalil mal se entendia como gente, mas já tinha uma certeza: iria ser médico, a mesma profissão do pai. Não deu outra. Vinte e um anos depois, aos 24, ele realizou o sonho de infância. Em 1977, Kalil se formou em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Hoje, aos 51, no entanto, a medicina ocupa apenas uma pequena parte de seu tempo. Sua atividade principal são as pesquisas científicas e é por elas que é reconhecido internacionalmente. A prova disso veio por fax em 23 de novembro, quando a Third World Academy of Science - ou Academia de Ciências do Terceiro Mundo - o informou que havia sido escolhido para receber o prêmio TWAS 2004 Biologia. A TWAS considerou que Kalil o merecia por suas pesquisas que podem ajudar no combate à rejeição em transplantes de órgãos, processos alérgicos e doenças auto-imunes em geral.

O prêmio, que será entregue em novembro, na Biblioteca de Alexandria, no Egito, é uma espécie de Nobel do Terceiro Mundo. A TWAS foi criada há 20 anos por cientistas do Hemisfério Sul e trabalha com a Unesco, órgão da ONU para a educação e cultura.

Todo ano, a entidade concede oito prêmios para cientistas de países em desenvolvimento que tenham realizado pesquisas de excelência em biologia, química, matemática, física, engenharia, ciências agrícolas, da terra e médicas. Em 2004, outro brasileiro também foi premiado, o reitor da Universidade de São Paulo (USP), Adolpho José Melfi, que recebeu o prêmio da área ciências da terra.

Em relação a Kalil, o relatório divulgado pela TWAS no dia 22, após reunião que o escolheu como um dos premiados, diz: "Os mecanismos que desencadeiam a patologia, até aqui ignorados mesmo pelos cientistas do Primeiro Mundo, foram descritos e elucidados, em grande parte, graças ao esforço da equipe liderada pelo professor Kalil, que agora vem trabalhando na descoberta de técnicas eficazes no tratamento dos desarranjos imunológicos".

A patologia a que a TWAS se refere é a febre reumática, considerada uma das principais causas de insuficiência cardíaca em crianças. Kalil descobriu como uma infecção por estreptococos pode desencadear essa febre. "Fui premiado pela contribuição para a compreensão de como a resposta imune contra o agente infeccioso (no caso, o estreptococo) desencadeia uma doença auto-imune (a febre reumática)", explica.

Nascido em Porto Alegre, em 1.º de dezembro de 1953, o hoje consagrado imunologista estudou na infância e adolescência no tradicional Colégio Anchieta, dos jesuítas. Em 1978, após ter concluído a faculdade, sua vida teve grandes mudanças. "Casei e aceitei convite para fazer pós-graduação em imunologia na França", conta.

Ele morou em Paris, entre 1978 e 1983, trabalhando no laboratório de Jean Dausset, Nobel de Medicina de 1980 por sua descoberta dos Human Leukocyte Antigens ( HLA) ou Antígenos Leucocitários Humanos. Os HLA são moléculas existentes na superfície das células das pessoas e determinam a compatibilidade de tecidos, importante no caso de transplantes. Quando duas pessoas têm os mesmos HLA, uma pode doar órgãos para a outra.

Em Paris, Kalil fez mestrado e doutorado. Na época, Dausset solicitou ao governo sua permanência definitiva na França. "Minha mulher, no entanto, pediu para voltar. Fui para Porto Alegre e assumi o cargo de professor-assistente na UFRGS. Em 1985, aceitei convite de Fúlvio Pileggi e Adib Jatene e vim para o Incor, onde criei o laboratório de imunologia."

ELOGIOS

Pileggi, hoje com 77 anos, professor emérito da USP, lembra-se bem por que convidou, quando era diretor-geral do Incor, o jovem imunologista. "Estávamos refazendo o setor de transplantes e precisávamos de um imunologista de primeira linha", diz. "Então o convidei. Kalil deu a base científica aos transplantes e montou um dos melhores serviços de imunologia da América Latina, que é o do Incor. Ele é um dos melhores imunologistas do mundo."

Kalil é professor titular da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e diretor do Laboratório de Imunologia, onde coordena 80 médicos e pesquisadores. Além da febre reumática, as pesquisas da equipe poderão ter aplicações nas áreas de transplante, alergia, mal de Chagas e até aids.

O diretor da FMUSP, Giovanni Guido Cerri, também não economiza elogios a Kalil. "Ele é um pesquisador de nível internacional", afirma. "O prêmio é merecido e mostra que, quando há infra-estrutura, pesquisador bom e uma instituição forte, como a FMUSP, os resultados aparecem. O Brasil devia seguir esse caminho."

Pai de Emmanuelle, de 21 anos, no último ano de Administração de Empresas, e Fernando, de 19, no 2.º ano de Engenharia, Kalil, apesar dos vários cargos, acha tempo para fazer ginástica, conversar com os filhos, jogar tênis ou ler. "Só uma coisa não faço", revela. "Ver televisão."

Quanto ao prêmio, diz que mais do que o reconhecimento a ele e à equipe, a honraria engrandece o Incor e a FMUSP. "São instituições que se caracterizam pela excelência", diz. "Mas também é importante para nós da equipe, porque trabalhamos no limite do conhecimento, não conseguimos ver muito à frente. Então é bom que alguém nos diga que estamos no caminho certo."