Título: Bush adota estratégia da 'irrelevância da mídia'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Internacional, p. A16

Dez meses depois da revelação de uma sucessão de fraudes jornalísticas perpetradas por um jovem repórter do New York Times, as demissões punitivas de cinco produtores e executivos da Divisão de Jornalismo da TV CBS, na semana passada, estilhaçaram a reputação de outra instituição da grande imprensa americana. No NYT, o caso resultou na queda dos dois principais executivos do mais influente jornal dos EUA - o diretor de redação, Howard Raines, e o editor-chefe, Gerald Boyd. Motivado pelo uso de documentos forjados para provar uma denúncia provavelmente verdadeira - a de que o presidente George W. Bush deixou de cumprir suas obrigações de piloto da Guarda Nacional do Texas no início do anos 70, onde prestou serviço militar, e safou-se de ser mandado para o Vietnã - , o episódio expôs os podres da CBS. A emissora foi pioneira no grande telejornalismo americano e pôs um triste ponto final da carreira de Dan Rather, seu o veterano âncora, que se antecipou à divulgação dos resultados da investigação interna feita pela CBS, anunciando a decisão de aposentar-se em março.

As debacles do New York Times e da CBS News em menos de um ano, e outros casos semelhantes que ocorreram nesse intervalo, alimentam a perda de credibilidade da mídia tradicional entre os americanos.

De acordo com um levantamento que o Pew Center for the People and the Press faz periodicamente há vinte anos, a proporção dos americanos que acham que a grande imprensa reporta os fatos corretamente caiu de 55% em 1985 - considerada baixa na época - para 36% hoje. A erosão da credibilidade da mídia obviamente tem facilitado a estratégia de comunicação hostil à imprensa do governo Bush.

"No pós-guerra, esta Casa Branca é diferente das anteriores no sucesso que vem tendo em ignorar a imprensa tradicional", disse ao Estado Ronald Elving, editor sênior da National Public Radio e professor visitante da American University, onde dá um curso sobre as relações entre imprensa e governo. "Era difícil penetrar na Casa Branca de Reagan, mas sua estratégia de comunicação incluía o uso da mídia. Esta administração, com exceção dos cuidados que toma com os aspectos visuais do poder, não se importa muito com a imprensa: quase não usa os vazamentos de informações, não costuma antecipar anúncios de grandes iniciativas aos jornalistas que cobrem a Casa Branca e não demonstra interesse nos jogos que administrações passadas jogaram com a mídia."

Segundo Elving, "a mentalidade de crise que se instalou no país depois do 11 de Setembro ajudou Bush a alijar a imprensa e apresentar a decisão como algo do interesse nacional e necessário até à segurança nacional". Com o mesmo argumento, o governo não apenas limitou o acesso da imprensa às suas decisões, como levantou novas barreiras à obtenção de documentos dos arquivos oficiais, garantida pela Lei de Liberdade de Informação (FOIA). Essa legislação foi adotada nos anos 70, em conseqüência do escândalo do Watergate, para tornar o governo mais transparente.

A ordem, hoje, é negar, em princípio, todos os pedidos. E usar as oportunidades que se apresentam para manter jornalistas contra a parede, mesmo quando isso envolve profissionais da imprensa que simpatizam com a administração. É o caso de Judith Miller, uma veterana repórter do New York Times que ajudou a construir o falso argumento sobre a existência das armas de destruição em massa no Iraque, que Bush usou para justificar a invasão do país. Ela poderá passar meses na cadeia por resistir a revelar fontes de uma reportagem que nunca escreveu.

Ken Auletta, o prolífico crítico de mídia da revista New Yorker, foi o primeiro a descrever a estratégia sobre a "irrelevância da mídia" adotada por Bush. Num extenso artigo que publicou em março, Auletta descreve um esclarecedor diálogo de Bush com jornalistas que cobrem a Casa Branca, durante um churrasco em seu rancho no Texas.

O presidente começou a conversa dizendo que só lê as páginas de esportes dos jornais e nunca assiste aos noticiários da televisão. "Como, então, o senhor fica sabendo o que o público pensa?", perguntou-lhe um repórter. Bush respondeu: "Você está fazendo uma enorme suposição, a de que você (da imprensa) representa o que o público pensa."

Tensão sempre existiu entre a Casa Branca e a imprensa. "O que parece novo na Casa Branca de Bush é a incomum capacidade que demonstrou de manter a maior parte da imprensa longe, ao mesmo tempo em que controla a pauta do noticiário", afirmou Auletta. "Talvez pela primeira vez a Casa Branca tenha passado a ver os repórteres como um advogado em busca de maior acesso e melhores manchetes, como se a imprensa fosse simplesmente um outro grupo de pressão, e um grupo de pressão que não é nem de perto tão poderoso como já foi."

Para Elving, o desastre político e militar que se desenha no Iraque poderá forçar Bush a reavaliar sua relação com a imprensa. "Mas não há garantia, pois setores importantes da imprensa parecem persuadidos sobre os méritos da política da administração." Elving admite, porém, que, às vésperas de inaugurar seu segundo mandato, o ultraconservador presidente americano saboreia o sucesso de uma estratégia de ignorar a imprensa tradicional. Essa estratégia - diz ele - ironicamente muito deve à explosão dos novos meios de comunicação eletrônica, da televisão a cabo à internet e aos novos sistemas de difusão de informação baseados na telefonia celular, que, supostamente, levariam a uma democratização do poder.

Richard Viguerie, o publicitário da ultradireita americana que ajudou a levar Ronald Reagan ao poder, em 1981, transformando a mala direta em arma de divulgação de propaganda política, descreveu o fenômeno num livro intitulado A Virada à Direita da América, no qual explica "como os conservadores usaram os meios novos da mídia e a mídia alternativa para tomar o poder".