Título: Camões não tem medo do Tio Sam
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Aliás, p. J4
Aos 76 anos, Evanildo Bechara orgulha-se da profissão que exerce. É um filólogo. Se a explicação do termo fosse requerida em vestibulares ou no processo de seleção de diplomatas, certamente muitos candidatos se atrapalhariam. Filólogo é o estudioso da evolução das línguas. Há décadas lidando com sintaxes, léxicos e morfologias, este mestre pernambucano assombrou-se ao saber que o inglês deixa de ser matéria eliminatória nos exames para o Instituto Rio Branco. Não entende por que o Itamaraty vem dando menos importância à desenvoltura dos seus representantes com os idiomas estrangeiros. Gramático respeitado em todos os países da comunidade lusófona, catedrático da UERJ e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra, o professor logo soltou o comentário, quase um lamento: "Quando se rebaixa um patamar cultural, o prejuízo atinge a todos nós." Autor da Moderna Gramática Brasileira (obra que está na 37.ª edição, fora as incontáveis reimpressões), Evanildo Bechara não se deixa levar por discursos protecionistas em relação ao português, língua à qual dedicou uma vida inteira de estudos. Não lhe mete medo a invasão das expressões americanizadas, porque estruturalmente a nossa língua é mais forte, garante. E rejeita a tese de que temos um idioma em crise. "Em crise está a cultura em nosso país", diz. Nesta entrevista para o caderno Aliás, o ocupante da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras deixa claro suas posições a respeito de uma polêmica que agitou a semana: senhores diplomatas, competência lingüística nunca é demais.
Valorizar o português, excelentíssimos ministros, é ação que começa na família e prossegue na escola, nos níveis fundamental e médio. Se não houver isso, deficiências posteriores poderão ser incontornáveis. E, mais grave do que um estrangeirismo aqui, outro ali, é a banalização cotidiana do português.
Como o senhor avalia a norma do Ministério das Relações Exteriores determinando que a prova de inglês não seja mais eliminatória no processo de seleção dos candidatos ao Instituto Rio Branco?
Toda vez que um patamar cultural desce, há um grave prejuízo, o que nos atinge. Isso em qualquer setor, em qualquer profissão. No Ministério das Relações Exteriores, não é aceitável que se abra mão de algo que vise o bom desempenho no inglês, idioma que hoje é a língua franca da Cultura e da Ciência.
Isso já havia acontecido com o francês, não?
Exatamente. Quando o francês perdeu a hegemonia no instituto, a repercussão foi tremenda. Aquilo marcou o declínio do idioma na sociedade brasileira. O ministério tem todo o direito de estabelecer as regras do seu jogo, mas deve tomar cuidado para que elas não sejam danosas ao desempenho do diplomata. O ideal seria elevar o patamar cultural, não rebaixá-lo. Em outras palavras, mais competência lingüística.
Agora, tanto o inglês quanto o francês e o espanhol terão o mesmo peso no processo de seleção.
O critério de tratar com eqüidade as línguas estrangeiras e de dar um maior peso à língua portuguesa não é ruim.
Mas a prova de História terá mais peso do que a prova de línguas. Isso é bom?
É preciso ponderar. Uma matéria como História poderá facilitar o acesso ao Itamaraty de um candidato que não tem conhecimento ou desempenho apropriado em línguas. A História está por trás da atividade do diplomata, porém as línguas estrangeiras estão à frente. É pelo uso das línguas que se estabelecem as relações internacionais.
O que se diz no Itamaraty hoje é que a História dá mais estofo à atividade diplomática.
Sem dúvida, mas, sem competência lingüística, o estofo pode não vir à tona.
O chanceler Celso Amorim parece preocupado com a preservação da língua portuguesa. Ou, preocupado com uma certa dominação do idioma inglês. Está dando voz a um nacionalismo lingüístico?
Eu não tenho nada contra os movimentos em defesa da língua materna. Mas, não é no Itamaraty que a soberania lingüística deve prevalecer. Isso precisa vir do ensino fundamental e médio. Se a consciência da língua parte do Instituto Rio Branco, então é como iniciar a construção de um edifício pela cobertura, e não pelos alicerces.
O que Machado de Assis diria de uma portaria como esta?
Tenho a impressão de que ele a olharia com reservas, por restringir o conhecimento.
É fato que o português está sendo invadido por expressões inglesas ou americanizadas - como background, playground, delivery, fast food, baby sitter, download... Isso o preocupa?
Não. É preciso diferenciar língua e cultura. O sistema da língua não sofre nada com a introdução de termos estrangeiros. Pelo contrário, quando esses termos entram no sistema têm de se submeter às regras de funcionamento da língua, no caso, o português. Um exemplo: nós recebemos a palavra xerox. Ao entrar na língua, ela acabou por se submeter a uma série de normas. Daí surgiram "xerocar", "xerocopiar", "xerografar", enfim, nasceu uma constelação de palavras dentro do sistema da língua portuguesa. Então esse processo não é ruim?
É até enriquecedor, pois incorpora palavras. Não há língua que tenha o seu léxico livre dos estrangeirismos. A língua que mais os recebe, curiosamente, é o inglês, por ser um idioma voltado para o mundo.
Hoje fala-se "delivery". Mas poderíamos dizer "entrega a domicílio". E há quem diga que o correto é "entrega em domicílio". Será? Na dúvida, há quem fique com o "delivery".
A palavra inglesa "delivery" não chegou a entrar no sistema da nossa língua, pois dela não resultam outras palavras. Apenas entrou no vocabulário do dia-a-dia, no contexto dos alimentos. Agora deram de falar que "entrega em domicílio" é melhor do que "entrega a domicílio". Não sei de onde isso saiu, porque o verbo entregar normalmente se constrói com a preposição "a". Fulano entregou a alma "a" Deus. De qualquer modo, a língua se enriquece quando você tem dois modos de dizer a mesma coisa.
E por que usar "delivery" se temos uma expressão própria em português? Não é mais um badulaque desnecessário?
Não sei se é badulaque, o fato é que a língua, que não tem vida independente, também admite modismos, além de refletir todas as qualidades e os defeitos do povo que a fala. Estrangeirismos aparecem, somem e podem ser substituídos por termos nossos. Foi o que aconteceu com a terminologia clássica e introdutória do futebol no Brasil, quando se falava em goalkeeper, off side, corner. Com o passar do tempo e sem nenhuma atitude controladora, os termos estrangeiros do futebol foram dando lugar a expressões feitas no Brasil, como goleiro, impedimento, escanteio. Pior que estrangeirismo é quando leio em artigos de jornal expressões como "tá bom". Isso é muito mais prejudicial ao destino do português do que o estrangeirismo que vai e volta.
Mas as pessoas falam despreocupadamente "tá bom"...
Falar é uma coisa, escrever é outra. Em casa, você se veste como quiser, mas, quando sai, deve se arrumar, não é? Essa mesma relação se estabelece entre a língua falada e a língua escrita.
O primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira, dizia no século 16 que "as línguas são o que os falantes fazem dela". Se tomarmos a afirmação ao pé da letra, logo daremos como certa a expressão "vende-se casas", assim, erroneamente com o verbo no singular?
Depende da cultura dos falantes. Se ela diminuir a ponto de a língua se tornar um patuá, então tudo é possível. Nós temos testemunhos do português escrito a partir do século 12 e a primeira gramática só apareceu no século 16, de modo que, muito antes de haver uma sistematização, havia só a língua falada. Por isso entendo Fernão de Oliveira. Ele queria dizer que um falante escolarizado faz com que a língua fique na sua modalidade mais elaborada.
Professor, a língua portuguesa foi transplantada para o Brasil e aqui sofreu mudanças ao contato com o índio e o africano...
Não foram mudanças acentuadas. As maiores mudanças ocorreram no vocabulário, porém a língua manteve seu sistema interno, sua morfologia e sua sintaxe. Também a fonética não tem tanta importância quanto a morfologia e a sintaxe.
Jamais houve a miscigenação de línguas?
Isso mesmo. Basta dizer que, se tomarmos um texto em português do século 16, como a carta do Caminha ou um dos escritos do Anchieta, vamos ler o documento com surpreendente facilidade. Ao longo do tempo, o português evoluiu muito mais lentamente que o inglês ou o francês. Um francês de hoje, para ler Racine, ou um inglês, para ler Shakespeare, encontram muito mais dificuldade do que um brasileiro para ler Camões. Porque as mudanças sociais vividas na França e na Inglaterra foram mais penetrantes do ponto de vista da língua. Já o português mudou mais nos últimos 50 anos do que nos últimos dois séculos.
Certos estudiosos se manifestaram a favor de uma língua brasileira que substituísse a portuguesa do Brasil. O que acha disso? Não existe língua brasileira. Existe um estilo brasileiro da língua portuguesa. A língua é a portuguesa, e pronto. Prova disso é que as gramáticas de maior sucesso em Portugal foram escritas por brasileiros - como as de Rocha Lima, Celso Cunha e a minha própria.
Como são bem aceitos em Portugal os dicionários do Aurélio e do Houaiss.
Mas os portugueses acreditam falar melhor o idioma do que os brasileiros...
O conceito "falar melhor" não existe. O melhor falar paulista é o que se ouve em São Paulo. O melhor falar carioca é o que se pratica no Rio. É lenda dizer que o português falado no Maranhão é o melhor do Brasil. Onde se fala melhor é o lugar onde você está. Agora, quem escreve o melhor português? Isso deve ser conferido na gramática, que sempre estará acima da diversidade lingüística que todo idioma apresenta.
Antigamente, o livro de gramática era companhia inseparável do estudante...
E companhia duradoura! Não só a gramática, mas a antologia também. E os alunos passavam anos com os livros a tiracolo. Agora há um movimento no sentido de não se estudar gramática. Isso no Brasil, porque em países adiantados as gramáticas não só continuam a ser estudadas, como estão sendo ampliadas. Há coisa de oito anos, foi publicada na Itália uma gramática de três volumes, com mais de 2 mil páginas. Mais recentemente foi a vez da Espanha, com mais de 5 mil páginas. Afastar-se da gramática tem conseqüências. Hoje jornais brasileiros publicam colunas que funcionam como consultórios gramaticais, resolvendo o que há de mais elementar. É conjugação, é plural de palavras, é regência verbal, é concordância, enfim, o que se aprendia no ginásio. Os leitores querem saber se é correto dizer "negocia" ou "negoceia", o dengue ou a dengue, o tsunami ou a tsunami, enfim, tudo muito elementar. Impossível tratar de uma questão mais transcendental da língua porque o jornal precisa suprir a lacuna da gramática.
O tema da redação da Fuvest, este ano, foi a "descatracalização" da vida, termo que nem no dicionário está. Isso é admissível?
Pois é, o pobre estudante tem de adivinhar o que a palavra significa...Vamos ver: catraca tem a ver com algo que contém a passagem. Descatracalizar deve ter o sentido de desimpedir as coisas.
O senhor é favorável à unificação ortográfica do português?
Sou totalmente a favor. Neste ponto, nossa língua está atrasada porque a unificação da ortografia já existe no francês, no inglês, no alemão, no árabe! A dificuldade é que muitos pensam que ortografia é língua, e não é. Ortografia é um sistema à parte, diz respeito só à escrita. A unificação tem vantagens para o ensino, para a política, para a economia... Por que um livro feito em Portugal tem de ser relançado no Brasil por conta das diferenças ortográficas? O Dicionário Houaiss saiu recentemente em Portugal em vários volumes. A editora de lá teve de mudar a ortografia do dicionário inteiro para oferecê-lo ao público!
E por que tanta demora para a unificação entrar em vigor?
O acordo foi fechado nos anos 80 e ratificado em 90. Por abarcar vários países, inclusive alguns na África que estiveram em guerra, a tramitação tem sido mais lenta. Agora ficou assentado que não há a necessidade de se ter a assinatura de todos os países da comunidade lusófona. Basta que três países assinem o acordo - e isso já foi feito pelo Brasil, por Portugal e pela Guiné-Bissau - para que ele entre em vigor imediatamente. Mas ainda vai demorar. Portugal acabou de lançar dois dicionários importantes, um feito lá, e o outro é o nosso Houaiss. Não teria sentido tirar a validade dessas obras. Dicionário é um produto caro.
Brasileiros têm mais dificuldade de aprender línguas anglo-germânicas?
Qualquer dificuldade de aprendizado que se note no brasileiro tem a ver com deficiências do sistema educacional. Há muito tempo as autoridades voltaram as costas para o elemento produtor de cultura na escola, que é o professor. Quando se fala em mudanças no sistema, só se pensa no aluno. Não se pensa no professor que nem três meses de férias tem mais, tempo importante não só para o seu descanso, como para a sua atualização. Hoje este talvez seja o profissional que menos estuda, não porque assim queira, mas porque tem menos tempo para fazê-lo. Para sobreviver com salários aviltantes, precisa assumir uma jornada de oito horas de aula por dia, no mínimo. Isso engloba mais ou menos 12 horas de trabalho. Quem passa por isso todos os dias chega em casa esmagado.
E a reciclagem do corpo docente?
Não existe. Os professores estão estudando em livros escritos para alunos, o que está errado. Faça uma pesquisa por conta própria: se você entrevistar dez professores de língua portuguesa, pergunte que dicionário têm em casa. De modo geral, têm minidicionários, e todo professor de português precisa de um bom dicionário da língua, um bom dicionário de etimologia, um bom dicionário de regência, um bom dicionário de cultura geral, um bom dicionário de mitologia. Em Machado Assis, no conto Um Apólogo, o autor se fixa nos dedos de uma costureira, "ágeis como os galgos de Diana". Ora, o professor precisa demonstrar que esses galgos não são quaisquer cachorros e Diana não é a mulher, mas o mito. Mas ele não tem tempo, recursos e nem motivação para buscar esse saber.
Televisão, rádio, cinema, publicidade, MP3 - o senhor não acha que há um predomínio da oralidade na língua portuguesa?
Ah, estamos imersos na oralidade. A língua falada varia geograficamente, já a língua-padrão se sobreleva a tudo. Ela é o interlocutor que nos traz o passado, nos conecta ao presente e nos prepara para o futuro. Por que é mais fácil compreender uma prosa do século 16 do que uma peça de teatro, do mesmo período? Porque o teatro está impregnado de oralidade. E a prosa é língua-padrão, resiste, fica.
A saída é ler mais?
Ler, ouvir, escrever, tudo é importante. Mas, se você passar a vida ouvindo "eu vi ele", certamente não conseguirá escrever "eu o vi". O que é melhor, o que é pior? Há uma ocasião adequada para tudo. Competência lingüística é ser um poliglota na própria língua, ou seja, é trafegar nos diferentes níveis de maneira adequada. Porém, o mais grave é que a oralidade invadiu a escola. Nossas crianças lêem raros livros, mas precisam ler artigos extraídos de jornais e revistas, textos com alta dose de oralidade. Estamos formando pessoas que não verão outra possibilidade para a língua portuguesa fora da oralidade! Cogita-se aumentar o número de aulas de português no currículo. Para quê? Para jogar mais oralidade? Ou reintroduzir o ensino de latim. Para quê? O latim não vai resolver o problema que enfrentamos com a nossa língua-padrão. Fico desanimado quando abro um livro didático e a primeira palavrinha dirigida às crianças é: "Oi!". Língua é ritual. Em casa, você não se preocupa tanto com o copo que vai à mesa. Num jantar formal, é bom que lhe sirvam o vinho em cálice adequado. Assim é com o nosso português.