Título: Novos rumos nas relações Brasil-Espanha
Autor: Marco Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2005, Nacional, p. A6

A visita ao Brasil do presidente do governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, constitui um fato transcendente nas relações hispano-brasileiras, depois de décadas de indiferença, em que as relações bilaterais se caracterizaram pela mútua irrelevância. Historicamente, os dois países mantiveram no seu relacionamento um baixo perfil e uma escassa densidade política e econômica, como conseqüência das diferentes motivações regionais e geopolíticas e das orientações divergentes de suas políticas externas. Esta situação de irrelevância começou a ser superada a partir de 1979 com a convergência de três forças profundas: a redemocratização, a integração regional e os processos de estabilidade e abertura econômica. Na segunda metade dos anos noventa, no bojo dos investimentos espanhóis na América Latina e, destacadamente, no Brasil, verifica-se uma mudança radical no padrão das relações bilaterais.

Os dois países vão trilhar um caminho comum, com interesses e valores semelhantes que resultarão, em 2003, na definição de uma relação privilegiada sintetizada num Plano de Parceria Estratégica pelo qual Brasil e Espanha se comprometem "a trabalhar para compartilhar conhecimentos e experiências que propiciem maior aproximação entre seus povos e promova a justiça social, o crescente intercâmbio de sua riqueza cultural e científica e, em definitivo, maior prosperidade de seus cidadãos."

Zapatero deveria nestes dias olhar para trás e evitar os erros do anterior governo espanhol nas relações com o Brasil. As relações bilaterais já estavam em trajetória ascendente no período Aznar, mas a ênfase foi dirigida quase exclusivamente aos aspectos econômicos, o que teve como tradução uma agenda hispano-brasileira orientada aos temas de investimentos e sua proteção. Ficou patente a subordinação dos aspectos políticos das relações às questões de ordem econômica como resultado do volume que iam adquirindo os interesses espanhóis comprometidos no mercado brasileiro.

Com a vitória do Partido Socialista espanhol nas eleições de 2004, as relações bilaterais vão se beneficiar de uma forte sintonia política e de uma maior convergência ideológica entre Lula e Zapatero. Nessa nova fase existiam outras prioridades que, sem relegar a um segundo plano sua dimensão econômica, davam uma guinada nos rumos das relações Brasil-Espanha, explorando novos caminhos alicerçados no papel protagonista da dimensão social e numa visão das relações internacionais mais solidária, ancorada firmemente num multilateralismo pacífico e integrador, que pretendia fazer da luta contra a fome e do cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio sua bandeira mais representativa.

Em conseqüência, a agenda hispano-brasileira tem se reorganizado, mudando o viés economicista predominante nos últimos anos. Os temas que Zapatero irá tratar com Lula podem ser, entre outros, a participação espanhola na Ação contra a Fome e a Pobreza, os esforços conjuntos na manutenção da paz no Haiti, a reforma das Nações Unidas, onde existem divergências entre Madri e Brasília no que se refere à composição do Conselho de Segurança, o eventual apoio espanhol à candidatura do embaixador Seixas na OMC, na hipótese do fracasso da postulação de Pascal Lamy, o impasse nas negociações União Européia-Mercosul e a proposta de trocar parte da dívida externa brasileira com a Espanha por investimentos em educação. Mas sem dúvida o grande desafio das relações Brasil-Espanha será a implementação do Plano de Parceria Estratégica, que constitui, nas palavras do chanceler espanhol Moratinos, "a prioridade bilateral fundamental".

Na perspectiva do presidente Lula, a parceria com a Espanha "é expressão eloqüente do extraordinário dinamismo de nossas relações bilaterais (...), uma parceria natural, sedimentada não apenas pelos elementos históricos, culturais e políticos que nos unem, mas também pelos novos vínculos regionais que se consolidaram a partir da década de 90 - tais como o relacionamento entre o Mercosul e a UE e o diálogo no âmbito ibero-americano".

Existem todos os elementos para que a parceria estratégica entre o Brasil e a Espanha seja uma realidade, mas os dois governos devem evitar o perigo de "nadar e morrer na praia" ou de um excesso de retórica que faça com que as relações bilaterais fiquem no campo das declarações de intenções, sem apresentar um balanço tangível de realizações concretas. A visita de Zapatero deve servir para definir, com os pés no chão, as formas de continuarmos progredindo juntos.

*Bruno Ayllón é doutor em Relações Internacionais pela Universidade Complutense de Madri e pesquisador visitante no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.