Título: Madeira-Mamoré, 366 quilômetros de puro descaso no meio da selva
Autor: Eduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2005, Nacional, p. A12

Fora do mapa das preocupações nacionais, a ferrovia Madeira-Mamoré é hoje uma sucata velha prestes a ser conhecida nacionalmente. Nenhum governo tem planos para recuperar seus 366 quilômetros. Nenhum empresário se aventura em investir um único tostão para fazer as marias-fumaça voltarem aos trilhos. Mas a partir desta semana uma minissérie de TV vai contar como foi a construção, no início do século 20, da mais épica das obras de engenharia civil do País. E muitos vão se perguntar: como ela está nos dias atuais? Está como foi deixada desde sua desativação, em 1972. Abandonada. Obras abandonadas não são novidade no Brasil. A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré é mais uma. Em meio às recentes discussões sobre a infra-estrutura (ou a falta dela) no País, esse exemplo de abandono promete virar tema de debate nacional. O seu fim demonstra, na essência, como governos e governantes brasileiros desprezam o patrimônio histórico e arquitetônico. De Porto Velho a Guajará-Mirim, ela é só uma triste ferrovia sem vida.

Musgos, folhas, troncos, árvores, é a floresta amazônica retomando o espaço da estrada de ferro. Em outras localidades, são calçadas, barracos, casas, prédios e pontos comerciais. A terra já cobriu milhares de trilhos e dormentes. O asfalto, também.

Pontes metálicas, que antes sustentavam toneladas de locomotivas e vagões, viraram objetos inúteis na paisagem. Ou úteis, quando têm de substituir as pontes da rodovia BR-364. E particularmente ideal para o comerciante Joaquim Gonçalves Mendes, de 72 anos. Há um ano, ele montou sobre uma delas, a Mutum-Paraná, um bizarro bar para garimpeiros.

"Pensei: vou pegar um pedaço dessa ponte. Está toda acabada mesmo", relata Mendes, um filho de seringueiro que há 9 anos construiu uma casa numa invasão logo depois da Madeira-Mamoré. Nascido em Guajará-Mirim, ele "alcançou" de pegar o trem antes da sua desativação, nos anos 50.

Tem saudades daquela época, mas prefere pensar no futuro. "Será que tem enguiço ficar aqui?", pergunta, para ele próprio responder. "Não estou estragando nada, só cuidando para ela não acabar. Vá ver no outro lado da ponte." No bar de Mendes, há mesa de sinuca, mesas e cadeiras de plástico, um chão de madeira sobre os trilhos e dormentes, um teto de palha, música em alto volume e muita bebida para aplacar a sede dos garimpeiros que exploram ouro nos rios da região. O caminhão da entrega de cerveja e refrigerante chega até ele. Com tantas facilidades e uma clientela que cresce nos fins de semana, o comerciante já pensa em avançar um pouco mais sobre a ponte da ferrovia.

Os poucos mais de dez metros quadrados ocupados por Mendes são desprezíveis perto de outro tipo de invasão ao longo da Madeira-Mamoré.

Fazendas que se medem em hectare (dez mil metros quadrados) - com centenas de cabeças de gado pastando ao lado de trilhos e postes - invadem o que deveria ser uma ferrovia. Elas são negociadas livremente, com placas na BR-364 indicando nome da propriedade e telefone. Pela lei, 150 metros de um lado e de outro a partir do centro dos trilhos pertencem à União.

A falta de fiscalização é parte de um imbróglio jurídico que se arrasta desde 1992. Naquele ano, o então presidente Fernando Collor de Mello assinou um decreto repassando os bens imóveis da ferrovia para o Estado de Rondônia. Mas até hoje isso não ocorreu.

Quando muito, algumas tentativas de reativá-la em alguns de seus trechos para fins turísticos. Praticamente sem dono, a Madeira-Mamoré viu então trilhos e dormentes serem roubados, locomotivas e litorinas acabaram depredadas e muita fundição apodrecer nas oficinas de Porto Velho.

A sonhada ligação do Atlântico com o Pacífico que passaria por seus trilhos jamais se consumou. Quando foi construída, entre 1907 e 1912, ainda no auge da borracha e da castanha amazônicas, a ferrovia era o melhor meio de transporte possível. Por algum motivo inexplicável, poucos assumem que hoje ela é inviável economicamente e menos ainda aqueles com soluções para resolver o que fazer com o que sobrou dela.

BITOLA

A Madeira-Mamoré tem bitola de 1 metro - o padrão da época. Os trens de carga utilizam hoje a bitola de 1,20 metro. A diferença de 20 centímetros é crucial. Adaptá-la às atuais exigências comerciais seria caríssimo. Mantê-la do jeito que está significa que só as antigas locomotivas Baldwin teriam como trafegar. Por isso, fala-se agora em recuperar dois trechos para fins turísticos. Algo em torno de 36 quilômetros. E os restantes 330 quilômetros? Nenhuma palavra.

"Essas discussões só vêm mesmo por causa dos políticos", resume José Lemos, o Zé do Apito, um ex-maquinista da Madeira-Mamoré. Filho e neto de ferroviários, o funcionário público da cidade de Guajará-Mirim é o zelador do trecho final da ferrovia. Com salário "na base dos R$ 500", ele critica o descaso dos governos estadual e federal, mas também o desprezo da população pela ferrovia. Com uma casa de madeira construída a não mais que três metros dos dormentes, Zé do Apito cuida da manutenção da linha.

Não deixa o mato crescer, verifica se não estão destruindo os trilhos ou construindo sobre eles. E pensa em ganhar uns trocados com seu trole, um carro de madeira movido a motor traseiro que chega a percorrer os 29 quilômetros transitáveis até Iata. "A idéia é pegar os legumes de uns sitiantes e trazer para cá. É difícil para eles porque não têm estrada."

FRONTEIRA

A Madeira-Mamoré é fruto do Tratado de Petrópolis, de 1903, que obrigou o Brasil a construir a ferrovia para beneficiar a Bolívia, interessada desde meados do século 19 em ter uma ligação com o Oceano Atlântico. Conseguiu o acordo por ter perdido o Acre para os brasileiros. Hoje, pouquíssimos bolivianos do outro lado da fronteira se ressentem pela falta da estrada de ferro para o comércio, mas muitos gostariam de vê-la reativada para o turismo. É o que diz Elias (Tico) Mesquita, prefeito da cidade-irmã Guayaramerín, na Bolívia. "O trem deveria ser a parte mais importante da integração dos dois países", explica o prefeito boliviano. "Se os brasileiros soubessem como a ferrovia influenciou a nossa cultura, não a teriam desativado." De fato, em Guayaramerín, onde se fala portunhol, um dos assuntos prediletos é Mad Maria, a minissérie da Globo, que será transmitida também ali a partir de terça-feira. "Todos vão querer andar na ferrovia, mas como se ela não funciona mais? Reativem ela (sic)." A ferrovia de inúmeros mitos, como os de ser composta de trilhos de ouro ou para cada dormente uma vida humana, custou 62 mil contos de réis.

O escritor Manoel Rodrigues Ferreira, autor de A Ferrovia do Diabo, a principal obra de referência escrita em português sobre a Madeira-Mamoré, avaliou que esse custo equivaleria a 28 toneladas de ouro à época. E estimou que cerca de 6.208 trabalhadores de várias nacionalidades morreram por causa de sua construção.

Tanto dinheiro enterrado e tantas vidas perdidas cujo real valor ganha agora uma nova chance de reconhecimento.