Título: Variações sobre a camisinha
Autor: Mario Vargas Llosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2005, Vida &, p. A20

O que parecia um passo da Igreja Católica com a bota de sete léguas do gigante do conto para sair da caverna e se adaptar à modernidade ficou no sonho. A declaração da Conferência Episcopal Espanhola, transmitida na terça-feira por seu porta-voz e secretário-geral, o padre Juan Antonio Martínez Camino, segundo a qual o uso de preservativos estaria autorizado aos crentes no "contexto de uma prevenção integral e global da aids", foi retificada no dia seguinte pela autoridade pontifícia. O bispo José Luis Redrado Marchite, secretário do Conselho Pontifício para a Saúde do Vaticano, lembrou em Roma que a camisinha "é um método que a Igreja Católica condena" e, pouco depois de receber esse puxão de orelha, o próprio monsenhor Martínez Camino voltava atrás, afirmando em um comunicado que o emprego da camisinha continua sendo, de acordo com o juízo da Igreja, "imoral". Parecia difícil, para não dizer impossível, que a hierarquia católica da Espanha, a mais ortodoxa e leal a Roma, pudesse ter se atrevido a formular uma tomada de posição desse tamanho, sem a anuência, ou pelo menos o conhecimento prévio, das altas instâncias vaticanas. Fiel à sua proverbial astúcia, a Igreja teria lançado um globo de ensaio a partir da complicada Espanha de nossos dias para o catolicismo - onde um governo socialista com amplo apoio da opinião pública aprova os matrimônios gays, reduz ou anula os cursos de religião e promove campanhas a favor do sexo seguro - a favor de uma atualização em uma matéria sobre a qual a sua posição intransigente traz mais críticas e a afasta mais ainda da realidade contemporânea, só para dar um passo atrás ao advertir a comoção que aquele anúncio causou em seus estratos mais graníticos?

De qualquer modo, em sua declaração à imprensa, o precavido porta-voz da Conferência Episcopal tinha dado a entender, de maneira um tanto anfibológica, que não se tratava de uma mudança radical de posição da Igreja sobre o controle da natalidade por métodos artificiais, mas, antes, de algo parecido com uma licença provisória e circunscrita, determinada pela gravíssima emergência que constitui a disseminação da aids em certas regiões do mundo, principalmente na África. E, citando um número recente da prestigiosa revista médica The Lancet, acrescentou que a Igreja coincidia com a estratégia proposta por essa publicação para combater a aids combinando o uso de preservativos com a abstinência sexual e a fidelidade conjugal. O que aconteceu exatamente? Logo se saberá. A única coisa que deve ser descartada é uma simples intromissão do monsenhor Martínez Camino, padre inteligente e astuto, se é que existem, e quem, sem dúvida, não foi mais do que um simples emissário sacrificado em uma operação de alto vôo que fracassou.

INTOLERÂNCIA

Seja como for, e apesar da retificação, há que se ver nesse pequeno âmago uma rachadura na sólida muralha da intolerância vaticana pela qual, mais cedo do que se imagina, acabará por desmoronar sua resistência feroz em admitir que o transparente e incômodo preservativo intervenha na vida do casal na hora de fazer amor e liberte os cônjuges, além do risco de contágio de uma doença, de uma gestação não desejada. Porque esse é o problema de fundo. Para a Igreja, o ato sexual não tem nem pode ter outro objetivo senão fecundar a mãe e trazer a este vale de lágrimas novas almas que sirvam ao Senhor. A perpetuação da espécie, a manutenção da vida humana, é o que santifica a família e justifica o ato do amor.

A idéia única de prazer sempre foi motivo de receio para a moral católica, e de escândalo e abominação se a questão for especificamente prazer carnal. O gozo do casal só é admissível, dentro do casamento, como conseqüência não buscada da razão primeira e única do encontro amoroso: a procriação. Desaparecida essa razão por ingerência do discreto capuz de plástico ou, no caso da mulher, do T de cobre, dos anticoncepcionais ou do anel vaginal, o ato sexual perde toda a aura de espiritualidade, deixa de ser uma ação de serviço a favor da vida e se converte em um ato animal, mera satisfação dos baixos instintos e rendição ao mais material e sujo do ser humano. Fazer amor pelo mero desejo de gozar é fornicar, sucumbir à concupiscência, pecar.

Essa concepção da vida sexual, contrapartida inseparável do culto à virgindade e à castidade como virtudes supremas da conduta humana, tão pouco realista, e no nosso tempo, em confronto tão estrondoso com a liberação dos costumes e dos parâmetros morais reinantes nos países modernos, afastou da Igreja Católica milhões de homens e mulheres e converteu a adesão de um grande número de crentes na instituição em uma hipócrita representação de circunstâncias, desprovida de conteúdo e de convicção, na qual as proibições dessa índole são pouco menos que universalmente desobedecidas pelos crentes, ainda que freqüentem a missa aos domingos e se casem e enterrem segundo os ritos católicos.

ASPIRAÇÃO

Não é de estranhar que a cuidadosa e rápida alusão do porta-voz da Conferência Episcopal espanhola à possibilidade de autorizar o uso de preservativos para combater a aids tenha provocado nervosismo e cólera nas intimidades do Vaticano e precipitado um desmentido. Porque no momento em que se resignar a tolerar a presença daquele pequeno auxílio na intimidade sexual, a Igreja se verá obrigada a reconhecer esta verdade que sempre negou (mas todos os católicos conhecem bem): que a motivação inicial para fazer amor, desde o aparecimento da caverna primitiva até os sofisticados debates amorosos da permissiva sociedade moderna, em todos os seres humanos sem exceção, foi a busca do prazer e não a fabricação de descendentes. Quando o ser humano descobriu que havia uma relação de causa e efeito entre a cópula e a gravidez haviam se passado muitos séculos que os casais levavam fazendo amor e não existe, nem nunca existiu, espécime humano capaz de experimentar uma ereção e produzir um orgasmo inflamado unicamente pela evangélica idéia de fecundar sua cônjuge e engordar com novos filhotes a raça humana.

A resistência sistemática da Igreja em admitir que a busca do prazer no âmbito sexual é uma legítima aspiração do ser humano e uma das predisposições da sua natureza contrasta com a tolerância que sempre mostrou com as fraquezas de homens e mulheres (principalmente daqueles, já que com estas foi muito mais severa) em outros campos, como os prazeres da mesa, o apetite do poder, de riquezas, de luxo e de domínio, entre outros, e a deixar passar por alto, em muitas épocas da história, abusos e desaforos às vezes enormes de tiranos e déspotas que não obtinham sua bênção. Apesar, e às vezes como conseqüência de, dessa objeção e horror do sexo e do prazer carnal que manteve, sua história se viu pontuada de quedas na tentação tão satanizada e combatida, a um tal grau que, paradoxalmente, a Igreja Católica seja talvez a matéria-prima que mais enriqueceu com suas cerimônias, cenários, príncipes, pontífices, bispos e pastores a disparar a imaginação erótica - não há pornografia nem erotismo dignos desse nome sem hábitos nem conventos - e a instituição religiosa que protagoniza, até os nossos dias, os mais sonoros escândalos sexuais que registra a história das religiões em atividade.

CONQUISTA

Tenho a absoluta convicção de que o preservativo e seus equivalentes acabarão por conquistar a aquiescência da milenar instituição e profetizo que o desenlace dessa antiga guerra ocorrerá num futuro próximo. Vejo nesse confuso episódio ocorrido na Espanha nestes dias o vislumbre da grande revolução, na qual o Vaticano bendirá o preservativo como acabou, de início com relutância, por bendizer a democracia, a liberdade, o mercado, que antes condenava em nome da fé.

O anacronismo que a doutrina da Igreja Católica representa em matéria sexual é tão absoluto em nossos dias que, se Roma não ceder e se adaptar à realidade, como lhe pedem tantos católicos convictos e confessos, e como fez em tantos outros campos, correrá o risco de ver-se pouco menos que encurralada e marginalizada como uma relíquia vetusta por outras igrejas, as aguerridas, incansáveis e entediantes igrejas evangélicas, por exemplo, que de um tempo para cá vêm lhe roubando a adesão dos setores mais empobrecidos do Terceiro Mundo.

Convém que o faça e se adapte a seu tempo, porque nada de bom acontecerá com a humanidade se, por ser velha e contrária ao progresso, a Igreja Católica acabar se tornando uma casca vazia, sem audiência. A religião é importante para processar a ansiedade e o desassossego produzidos nos seres humanos por sua condição mortal, sua incerteza e seu medo diante do além, e para refrear aqueles instintos que, deixados em liberdade, provocariam hecatombes e poderiam nos levar de volta às formas mais primitivas da barbárie, como escreveu Georges Bataille. Só uma minoria dos seres humanos pode viver sem religião, substituindo-a pela cultura. Para o comum dos mortais, além disso, a moral só é compreensível, admissível e praticável quando encarnada nos preceitos da religião. No entanto, para poder continuar existindo como essa força viva e operante que foi em tantos momentos do passado, quando representou um progresso intelectual, político, científico e moral em relação aos cultos e religiões da Antiguidade, ou na Idade Média, quando foi praticamente a única instituição capaz de aglutinar e dotar de sentido e ordem uma comunidade estremecida pelo medo, a confusão e as guerras, a religião precisa adaptar-se às realidades da vida e não exigir de seus adeptos o impossível. Por acaso a sobrevivência da Igreja Católica não vale um preservativo?