Título: Os britânicos, uma inspiração para Luther
Autor: Adam Hoshchild
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2005, Internacional, p. A26

Em todo o país, paradas, convenções e missas marcaram no dia 17 o legado do reverendo Martin Luther King Jr. Os participantes normalmente pensam nesse feriado nacional - criado contra uma considerável oposição duas décadas atrás - como a primeira grande comemoração feita nesse país da longa luta por justiça racial. Nem tanto. Durante muitas décadas, começando bem mais que 150 anos atrás, tanto os brancos como os afro-americanos celebravam outra data parecida: o 1.º de agosto. O ex-escravo e líder abolicionista Frederick Douglass chamou o 1.º de agosto de "ilustre entre todos os dias do ano". Na corte de Concorde, Massachusetts, em 1.º de agosto de 1844, Ralph Waldo Emerson fez um grande discurso contra a escravatura que a escritora Margaret Fuller, na audiência, descreveu enquanto "lágrimas heróicas, calmas, doces e justas enchiam os meus olhos". Naquele dia, em 1847, 10 mil pessoas se reuniram em Canandaigua, Nova York, para ouvir Douglass e outros falarem. Sete mil pessoas - negros livres e brancos simpatizantes - foram a um comício no dia 1.º de agosto em New Bedford, Massachusetts, em 1855. Algumas comunidades negras nos EUA continuaram a celebrar o 1.º de agosto até bem depois dos anos 20. Hoje, em muitos países caribenhos, a primeira segunda-feira de agosto é feriado nacional.

Por que o 1.º de agosto?

Muito depois da Proclamação de Emancipação dos Escravos de Abraham Lincoln, outro grande país foi o primeiro a acabar com a escravidão nos territórios que controlava: a Grã-Bretanha. E diferentemente da escravidão americana, encerrada essencialmente em conseqüência da Guerra Civil, a escravidão no Império Britânico acabou como resultado de um grande movimento popular - cujo início, tamanho e persistência diminuíram seu correspondente na América. É uma história que a maior parte desse país esqueceu há muito tempo, embora várias gerações de escravos americanos e seus descendentes a conheçam muito bem.

O movimento antiescravagista teve início em 1787. Até aquele momento, poucas pessoas na Inglaterra haviam falado a respeito do assunto. Mas meses depois que um agitador chamado Thomas Clarkson formou um comitê abolicionista formado por 12 pessoas em uma livraria de Londres, a agitação se espalhou pelo país. Dentro de poucos anos, mais de 300 mil britânicos estavam boicotando o açúcar, o maior produto das plantações escravagistas das Índias Ocidentais Britânicas. Quase 400 mil pessoas assinaram petições para o Parlamento exigindo um fim para a escravidão. Olaudah Equiano, um ex-escravo brilhante, escreveu uma autobiografia de sucesso e embarcou em uma excursão de cinco anos às Ilhas Britânicas. Thomas Clarkson percorreu 55 mil quilômetros no lombo de um cavalo, reunindo testemunhas para audiências parlamentares e estabelecendo comitês antiescravagistas. Em 1792, a Câmara dos Comuns se tornou o primeiro corpo legislativo nacional no mundo a votar o fim da escravidão.

No entanto, a proibição não se tornou lei porque a Casa dos Lordes retrocedeu. Depois a Grã-Bretanha e a França iniciaram duas décadas de guerra, e as guerras sempre são ruins para os movimentos progressistas. Ainda assim, os abolicionistas não perderam as esperanças. No começo do século 19, Clarkson viajou pelo país novamente, e em 1807 ambas as casas do Parlamento proibiram a escravidão.

Com o alto índice de mortes nas plantações das Índias Ocidentais Britânicas, os abolicionistas esperavam que cortar o suprimento de novos escravos acabaria rapidamente com a escravidão britânica. Quando isso não aconteceu, Clarkson - agora nos seus 60 anos - passou 13 meses em viagem pelo país novamente, desta vez, a bordo de uma diligência, entre 1823 e 1824.

Os próximos dez anos viram várias novas rodadas de organização: grandes petições, grandes encontros, lobbies habilmente coordenados, demonstrações de rua e, para o choque geral masculino, o surgimento de mulheres abolicionistas declaradas. Além disso, havia a pressão de uma grande e incontida revolta escrava na Jamaica. Finalmente, depois de meses de debates acalorados, em 1833, o Parlamento votou o fim da escravidão em todo o império. Quando a liberdade para todos veio, logo após a meia-noite de 1.º de agosto de 1838, um grupo de ex-escravos que estava reunido em uma igreja batista na Jamaica colocou um chicote, correntes e ferros de punição em um caixão e o enterraram nos fundos da igreja. O Dia da Emancipação dos Escravos tem sido celebrado desde então.

Hoje, em um momento em que parece haver pouco progresso na igualdade racial para celebrar, vale a pena olhar para o passado para se inspirar. O movimento antiescravagista britânico nos oferece algumas lições esperançosas. Primeiro, foi um exemplo sem precedentes de política de coalizão. Os principais grupos com as quais as pessoas se identificavam na Inglaterra do século 18 não eram partidos políticos, mas seitas religiosas. A cruzada antiescravidão viu quakers, anglicanos, batistas e metodistas trabalharem juntos por um objetivo secular comum.

Segundo, os abolicionistas eram muito imaginativos para descobrir novas técnicas para levar suas mensagens para um público mais amplo. Eles descobriram ou aperfeiçoaram o uso de quase todas as "novas mídias" da época: criaram o primeiro pôster político amplamente reproduzido e o primeiro logotipo para uma organização política (um escravo ajoelhado nas correntes); brandiam chicotes, correntes e algemas para dramatizar seus discursos; descobriram que o que atraía milhões de leitores para seus livros e panfletos não eram argumentações bíblicas, mas vívidos testemunhos.

E, finalmente, eles nunca desistiram. Nem a repressão da época da guerra nem o poderoso lobby pró-escravidão puderam extinguir o movimento. Clarkson, que continuou ativo toda sua vida, tinha 78 anos quando aquelas correntes foram enterradas.

Oito anos mais tarde, algumas semanas antes da morte de Clarkson, Douglass visitou-o. Clarkson ainda estava ocupado escrevendo panfletos e cartas abertas contra a escravidão - a escravidão americana, na época. Ele disse a Douglass que havia trabalhado pela causa durante 60 anos, e que se tivesse mais 60 para viver, continuaria a fazer a mesma coisa. Ambos sabiam que nenhuma luta para obter justiça é vencida facilmente, e a maior parte delas dura uma vida inteira ou mais.

King sabia disso também. Ao celebrar seu legado, homenageamos também o legado de todos que vieram antes dele, aqui (nos EUA) e fora. E, em um mundo onde a diferença entre os que têm e os que não têm às vezes parece maior do que nunca, reconhecemos o trabalho que ainda deve ser feito.