Título: A imposição da eternidade sobre o horror e o medo
Autor: Fred Melo Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2005, Aliás, p. J4

Há 60 anos, Primo Levi e alguns poucos sobreviventes esquecidos numa das enfermarias de Auschwitz testemunharam a chegada de um solitário soldado soviético. Sem apear de sua montaria, aproximou-se da cerca e decidiu afastar-se. O que então se apresentou a seus olhos com certeza desafiou todos os seus mapas cognitivos: do que se tratava, afinal? Para aqueles sobreviventes, a aparição surgiu como ícone de uma nova precipitação no desconhecido. O que, mais de meio século depois, aparece-nos como a libertação, para os que a viveram talvez tenha significado mais do que isso. Robert Antelme, no pungente relato em L Espèce Humaine, diz-nos da bizarra combinação entre a certeza da morte e uma certa sensação de eternidade, como sentimento básico dos internos dos campos de extermínio. A certeza da morte - "o objetivo que os SS escolheram para nós" - convive com a perspectiva de tempo congelado, a rotina que não conhece desdobramento a não ser sua contínua e dolorosa reiteração. Daí deriva a sensação de eternidade, circunscrita pela certeza da morte.

Sensação semelhante foi registrada em 1943 por Hans Erich Nossack, em The End: Hamburg, 1943: diante das ruínas da cidade, destruída durante uma semana da Operação Gomorra dos bombardeios aliados, Nossack fala de uma imposição de eternidade, por meio da supressão do passado e do absurdo de se pensar qualquer coisa relacionada ao futuro. Há algo de eterno nas ruínas, suprimidas de seu tempo originário, assim como nas vidas humanas privadas de sentido, no campo de extermínio.

A libertação introduz no universo imóvel do L¿ger uma espécie de reanimação do tempo, uma precipitação no obscuro. Esse parece ser o sentido dado por Primo Levi ao título do livro que fala de sua libertação e de seu retorno a Turim: A Trégua, e não algo como "A liberdade", o que para ele soaria, no mínimo, como implausível.

Com efeito, no início de A Trégua, encontramos um dos marcos fundamentais das narrativas de testemunho. Trata-se da imposição moral de prestar testemunho, dramaticamente apresentada por Levi quando se refere a Hurbinek, "um filho de Auschwitz", uma criança nascida no campo e incapaz de falar, e que vem a morrer em março de 1945, pouco após a libertação. À curta descrição da biografia, Levi acrescenta: "Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras".

A obrigação moral do testemunho não é exclusiva de Primo Levi. Ela percorre a narrativa de autores como Jean Améry, David Rousset, Altelme, Elie Wiesel, Reck-Maleczeven, Paul Steinberg e de outros que viveram o inferno do nazismo fora dos campos de extermínio, tal como Victor Klemperer. No entanto, tal exercício de rememoração, desde sua origem, encontra limites incontornáveis.

Antes de tudo, há uma pesada cláusula, deixada clara por Levi e Wiesel: os que sobreviveram não testemunharam a experiência integral. Os que o fizeram, por definição, não puderam testemunhar. Nesse sentido, Hurbinek - o menino mudo de Levi - vale como uma metáfora do Holocausto, pois o encerra na sua mais intensa e inacessível imanência. Hurbinek pode, ainda, ser percebido como um evento sem testemunha, para empregar a expressão de Shoshana Felman e Dori Laub.

Outro limite à lembrança impõe uma insolúvel contradição entre a decisão moral de prestar testemunho e a impossibilidade de encontrar sentido no cotidiano do L¿ger. Esse ponto, demonstrado de forma brilhante por Primo Levi, exibe um dos traços fundamentais do universo de Auschwitz: o da dupla supressão das crenças ordinárias e dos mais básicos princípios de causalidade.

As crenças comuns nada valem em Auschwitz, já que se referem a um passado suprimido e perderam toda a capacidade de sustentar expectativas críveis a respeito do futuro. A própria linguagem ordinária desfalece, diante de um mundo cuja simbologia aparece como indecifrável. Assim, diz-nos Levi, em É Isto um Homem?: "Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem." Os termos adotados pelo testemunho de David Rousset, em L Univers Concentrationnaire, são ainda mais duros: os habitantes dos campos são "homens portadores de crenças destruídas, de dignidades desfeitas".

A supressão da causalidade emerge, ainda, no relato de Primo Levi, quando, assaltado pela sede, colhe um pedaço de gelo que lhe é arrancado por um guarda. Diante do ato brutal, a pergunta ordinária, na verdade a mais ordinária das perguntas, balbuciada em seu "pobre alemão": Warum? A resposta, nada ordinária, é assustadora: aqui não existe "por quê".

Auschwitz vale, assim, como a mais radical refutação do mundo humano; apresenta-se como experimento no qual as crenças ordinárias dos internos são suprimidas, assim como seus nomes e histórias. Supressão que tanto se deve à inutilidade prática das crenças, produzidas num mundo que já não existe e para o qual não se retornará, quanto à progressiva destruição dos seus portadores. Ao perguntar "é isto um homem?", Levi tem diante de si um ser no qual desapareceu o sujeito, condição necessária para a operação do mecanismo da crença, ou, nas palavras de Paul Steinberg - em Speak you also -, um homo l¿ger.

O limite à lembrança reveste-se, pois, de uma impossibilidade de conhecer a totalidade e suas conexões causais. Em uma palavra, o seu sentido. Essa descoberta levou Primo Levi a uma posição cética: "Diante desse complicado mundo infernal, as minhas idéias estão confusas; será mesmo necessário elaborar um sistema e praticá-lo? Ou não será mais salutar tomar consciência do fato de não termos um sistema?"

Mas a decisão moral de prestar testemunho vence a misologia. A ausência de sistema acaba por dar curso, sobretudo em Primo Levi, a uma narrativa por fragmentos, governada por uma errática arte da memória na qual cada aspecto narrado evoca a monstruosidade impensável de Auschwitz. É Isto um Homem? na verdade é um extraordinário exemplar do que poderíamos chamar de uma estética de fragmentos, que opera por meio de imagens pungentes. Tal é o caso da descrição do que fazem as mães, antes do transporte para Auschwitz, a alimentar seus filhos, banhá-los e a lavar suas roupas. O fragmento que daí decorre é cortante: "Ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar." O fragmento capta, a um só tempo o detalhe, o absurdo e o destino. E prossegue: "Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem." A conclusão da série de pormenores assume a forma clara de uma interpelação de ordem moral: "Será que vocês não fariam o mesmo? Se estivessem para ser mortos, amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam de comer?"

Se a experiência completa de Auschwitz nos escapa - assim como escapou a seus sobreviventes -, resta o imperativo da lembrança, contra todos os limites que se interpõem ao conhecimento. Ainda que a proposição de Lyotard faça sentido - a de que Auschwitz vale como um terremoto que destruiu todos os instrumentos de mensuração -, é fundamental marcar tanto a singularidade como a transitividade do experimento.

Sua singularidade reside na idéia de um campo de extermínio, e não de um mero campo de concentração. As relações entre perpetradores e internos situam-se, portanto, além do que designam todos os conceitos conhecidos de poder, todos voltados para o governo dos vivos. O campo de extermínio é, antes de tudo, o pior dos mundos possíveis, pela combinação que encerra entre a mais completa assimetria de recursos de retaliação entre vítimas e algozes e a mais radical imprevisibilidade: em Auschwitz tudo foi possível.

Reconhecer, portanto, a singularidade de Auschwitz nos obriga, ao mesmo tempo, a buscar no mundo que o sucedeu os sinais dessa combinação macabra. Fazê-lo significa, tão-somente, avançarmos no tempo e tornarmo-nos contemporâneos de Auschwitz.