Título: Reforma democrática e republicana
Autor: Tarso Genro
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

O anteprojeto de reforma universitária que, modificado pelos debates em curso, será encaminhado ao Congresso Nacional segue as tendências da educação superior praticada nos países desenvolvidos e soberanos: busca de qualidade, amplitude social e identidade com os propósitos de justiça, contidos na idéia de uma nação pluralista e democrática.

O Ministério da Educação (MEC) reconhece a importância da iniciativa privada na educação superior. Lastima apenas que o estudante hoje não possa optar pela universidade pública ou pela universidade privada, pelo simples fato de que a falta de investimento na educação pública levou a um déficit de vagas na rede pública tão grande que dificilmente os esforços envidados pelo governo Lula conseguirão suprir. Este empenho do atual governo fica explícito na criação de 11 unidades acadêmicas (universidades, pólos universitários e câmpus avançados) federais já neste ano. Essas instituições, quando estiverem totalmente implantadas, oferecerão 400 mil novas vagas.

O MEC reconhece que a universidade privada é, antes de tudo, uma necessidade. Entretanto, é preceito básico que a educação não é mercadoria, é bem social, e é obrigação do Estado zelar pelos interesses de toda a sociedade.

Quanto à reserva de vagas, decisão já tomada por várias instituições federais no âmbito da sua autonomia, o MEC propõe que 50% das vagas das universidades federais sejam destinadas a alunos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Não é segredo para ninguém que as vagas nas universidades públicas são disputadas por jovens de todas as camadas sociais - mas os jovens das altas camadas têm mais sucesso na disputa.

É essa realidade que vamos mudar com a reserva de vagas - ao destinar 50% das vagas públicas a alunos da rede pública, além de possibilitar que excelentes alunos que não tiveram oportunidade de freqüentar cursinho possam entrar numa universidade federal. Estes jovens, evidentemente, terão seus conhecimentos avaliados pelo vestibular.

Dentro das vagas reservadas a alunos de escolas públicas, será destinado a afro-brasileiros e a indígenas um porcentual idêntico à participação dessas etnias na composição populacional de cada Estado. Por exemplo: se, no censo do IBGE, 16% da população de um Estado se autodeclarou negra e 2% se declararam indígenas, do total de vagas reservadas para provenientes de escolas públicas nas universidades federais daquele Estado, 16% serão destinadas a negros e 2% a indígenas.

É fundamental ressaltar que quaisquer alunos, para ingressar na universidade, deverão conquistar a aprovação no processo seletivo - e esse processo avalia o mérito. Não se pode confundir aprovação com classificação. Por exemplo: para ser aprovado num processo seletivo, o aluno tem de alcançar determinado número de pontos. Alcançados esses pontos, ele está aprovado. O que acontece é que não há vagas suficientes para todos os aprovados e apenas os mais bem classificados podem, efetivamente, ingressar na universidade. A reserva de vagas assegurará o acesso exclusivamente a alunos aprovados. E quem diz que o aluno foi aprovado é a instituição, que estabelece o critério de seleção, e não o MEC.

A autonomia universitária é o item norteador da reforma universitária. O MEC entende e deixa clara essa posição no texto que será enviado ao Congresso Nacional. Os Conselhos Comunitários Sociais, propostos pelo projeto, não comprometem a autonomia dos Conselhos Universitários na decisão de rumos de suas instituições. Os Conselhos Comunitários deverão ser presididos pelos reitores de cada instituição e sua função, explicita o projeto de lei, é a de opinar - e não de controlar, como se afirma equivocadamente.

A interlocução da universidade com organizações da sociedade civil é ampla, na nossa proposta. Ela deve ser feita com pessoas jurídicas, e não com "movimentos" abstratos, independentemente de quem eles representam legalmente, como é recomendável numa sociedade pluralista e aberta: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Ordem dos Advogados dos Brasil, Conselho Federal de Medicina, Confederação Nacional da Indústria e Federação Nacional dos Jornalistas, por exemplo.

O MEC entende que a interação da academia deve dar-se com todos os setores da sociedade, por isso induzimos essa interlocução na reforma. Isso não rebaixa a qualidade do ensino ou da pesquisa, mas amplia a sua influência social e qualifica os interlocutores, até mesmo para o convívio democrático.

A proposta da criação de um Conselho Comunitário Social visa a ouvir a nossa sociedade organizada. Esse conselho encaminhará subsídios para a fixação de diretrizes e para a política geral da universidade. É um órgão consultivo, não é deliberativo. Os colegiados deliberativos terão, segundo o anteprojeto de lei, maioria de representantes do corpo docente, o que é uma garantia da autonomia da universidade - aliás, já prevista na Constituição.

Para que possa existir mais interação com a sociedade também foi proposta a criação do Fórum Nacional de Educação Superior, órgão também consultivo, que se reunirá periodicamente com a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, por sua convocação e sob sua coordenação.

O projeto do MEC é democrático e republicano, adota orientações da Constituição federal e não tem nenhum sentido ideologicamente discriminatório ou autoritário. Um projeto de corte soviético seria autoritário e tecnocrático. Não ouviria ninguém. Nesse sentido, o neoliberalismo é, sem dúvida, mais próximo do sovietismo.

Os artigos introdutórios do projeto do MEC apenas reiteram na lei o que já manda a Constituição, subordinando a reforma à atual ordem jurídica, como é de bom costume numa sociedade democrática. O estranho é que isso cause mal-estar.