Título: É proibido esquecer
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/2005, Editoriais, p. A3

S essenta anos atrás, nesta data, depois de cinco horas de combate, três divisões soviéticas tomaram o lugarejo de Oswiecim, a pouca distância da célebre cidade histórica de Cracóvia, na Polônia. "Nem sabíamos que havia um campo de concentração ali", conta o ucraniano Yakov Vinnichenko, um dos cinco remanescentes da tropa, aos 79 anos. Havia, como logo se viria a saber, muito mais do que aquilo. Auschwitz-Birkenau, como os alemães rebatizaram o lugar, tinha sido o maior e mais eficiente centro de matança sistemática que o ser humano foi capaz de conceber.

Os soldados encontraram ali cerca de 8 mil cadavéricos sobreviventes de uma operação industrial de extermínio cuja escala e meticulosidade jamais cessarão de desafiar a imaginação. De setembro de 1941, quando os nazistas testaram em Auschwitz o gás Zyklon B em 600 prisioneiros de guerra soviéticos e 250 poloneses, aos meses finais de 1944, entre 1,1 milhão e 1,5 milhão de pessoas pereceram envenenadas, ou por inanição e doença, nas câmaras e barracas dessa grande instalação, em cuja entrada se lia Arbeit macht frei - o trabalho liberta.

Quase todos os mortos eram judeus trazidos dos quatro cantos da Europa ocupada, mas entre eles havia também ciganos - 500 mil deles foram eliminados em todo o Leste -, civis poloneses, russos e de outras nacionalidades, militantes políticos e homossexuais. Os inaptos para o trabalho eram tangidos para as câmaras de gás tão logo desciam dos abarrotados vagões de gado em que tinham sido transportados. Outros serviriam de cobaias para os experimentos pseudocientíficos dos doutores Josef Mengele, o "anjo da morte", e o menos famoso Eduard Wirths.

Um dos primeiros relatos minuciosos do monstruoso processo data de outubro de 1945. O médico Charles Bendel, um dos poucos entre os 76 mil judeus deportados da França que conseguiu sobreviver a Auschwitz, descreveu passo a passo, perante um tribunal militar britânico na Alemanha, a rotina do horror - a chegada dos trens, a seleção dos prisioneiros, a entrada, tangidos a golpes, dos condenados nas câmaras (cujas portas só a muito custo fechavam, por causa da superlotação), a remoção para os cinco crematórios anexos das pilhas de mais de 1 metro de mortos entrelaçados, a escavação de trincheiras onde seriam incinerados em piras de lenha os corpos que já não cabiam nos fornos.

Foi possível conhecer nos mais medonhos pormenores o que se passava no "inferno à solta" de Auschwitz, como resumiu Bendel, não apenas por testemunhos de viva voz, mas sobretudo pelas abundantes evidências materiais disponíveis. Em Treblinka, Belzec, Sobibor, Chelmo e outras filiais do Holocausto, os nazistas conseguiram destruir quase todas as instalações (além de pessoas) no crepúsculo de sua hedionda empreitada. O campo de Auschwitz ficou intacto. "Os alemães não esperavam que fôssemos tão rápidos", acredita o soldado Vinnichenko. "Eles não tiveram tempo de explodir tudo ou de encher o lugar de minas."

Tampouco conseguiram destruir a vasta documentação em que eles próprios registravam a maioria dos seus atos, com obsessão burocrática, precisão germânica - e incontido sadismo. Por exemplo, um Serviço de Identificação, o Erkennungsdienst, fotografava regularmente o cotidiano do campo, incluindo as experiências de Mengele. Alguns dos fotógrafos, prisioneiros poloneses que falavam alemão, também captavam imagens às escondidas, fazendo-as chegar à resistência em Cracóvia. Nada menos de 40 mil fotos fazem parte do acervo de Auschwitz e de outros museus do Holocausto, e ainda do centro Yad Vashem, em Jerusalém.

Líderes e representantes de governos de muitas partes do mundo chegam hoje a Oswiecim para lembrar as vítimas desse genocídio sem paralelo que se desloca inexoravelmente da memória viva para a história. É decerto "um dever moral", como disse o chanceler alemão Gerhard Schr¿der, nÒo esquecer a era nazista e os seus crimes. Mas quem saberß dizer por que o povo que deu ao mundo Kant, Goethe e Beethoven deu tambÚm o mal absoluto de Auschwitz; por que os Estados Unidos e a GrÒ-Bretanha nÒo atenderam aos apelos desesperados da AgÛncia Judaica para bombardear o campo; e por que, apesar da ret¾rica do "nunca mais", foram possÝveis os pogroms na B¾snia e em Ruanda nos anos 1990, e o ressurgimento do racismo na Europa.

Acima de tudo, fica a pergunta amargurada do escritor Elie Weisel, PrÛmio Nobel da Paz e ele pr¾prio um sobrevivente dos campos, dias atrßs na ONU: "Serß que o mundo alguma vez aprenderß?"