Título: Circo na Câmara
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/01/2005, Editoriais, p. A3

A chamada classe política não precisa muito, infelizmente, para se desmoralizar. A crônica dos vexames cometidos por legisladores brasileiros, com um desdém pela opinião pública que de há muito deixou de espantar, é não apenas enciclopédica, mas também de conhecimento geral. O retrospecto, portanto, aconselharia a não gastar tinta, papel e o tempo do leitor tratando de mais uma demonstração do que se permitem os políticos movidos pela contumaz busca de notoriedade. Nisso, por sinal, beneficiam-se do espaço que lhes concede um noticiário que parece tomar por relevante o que é meramente ruidoso, ou por sério o que é meramente circense.

Mas o caso que motiva este comentário envolve um dos mais altos postos da República, a presidência da Câmara dos Deputados, cujo titular, além de outras prerrogativas, está, por assim dizer, a apenas dois batimentos cardíacos do Palácio do Planalto, como substituto constitucional do chefe do governo e do seu vice, no impedimento de ambos. Até esta quarta-feira, era assunto de economia doméstica do PT, apesar do exagerado destaque recebido, a insistência do deputado Virgílio Guimarães em contrariar a decisão da bancada que no fim do ano escolheu o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh para candidato à sucessão do também petista João Paulo Cunha na direção da Casa.

Desde então, porém, a questão mudou de figura. Ele tornou oficial a sua pretensão de concorrer como avulso ao cargo que a praxe parlamentar reserva a cada dois anos ao principal partido na Câmara e no Senado. É mais fácil um político entrar no reino dos céus do que Virgílio eleger-se no pleito de 14 de fevereiro - se até lá não tiver desistido - embora o voto seja secreto. O mesmo se aplica, evidentemente, aos outros autocandidatos, desde o folclórico Jair Bolsonaro e o combativo José Carlos Aleluia,ambos do PFL, ao pontífice do baixo clero legislativo, o pepista Severino Cavalcanti.

De todo modo, a candidatura Virgílio é digna de exame por mostrar, primeiro, que até a mais disciplinada agremiação política brasileira, cujas bandeiras de luta deveriam sempre pairar sobre os seus portadores, tem lugar para a feira de vaidades típica das siglas convencionais, para não falar daquelas puramente fisiológicas. Segundo, que a feira se espraiou desde que o partido chegou ao governo, com uma agravante: por ter que compartilhar o poder, o PT não possui vagas suficientes para a quantidade e a intensidade das ambições florescentes. E, terceiro, por mostrar que a bancada da estrela não é uma confraria de querubins, muito menos um baluarte inexpugnável contra a demagogia de rés de chão.

De fato, ao lançar a sua candidatura avulsa, esse economista de formação, no seu terceiro mandato federal aos 55 anos, fez a severina promessa de que, se eleito, cada um dos seus 512 colegas terá a oportunidade de ver aprovado pelo menos um projeto de lei de sua autoria. E, num assomo anti-severino de austeridade, anunciou que cortará as despesas da Câmara - com água. "Se a água da casa é potável por que tem de se tomar água mineral?", perguntou aos 58 deputados de diversos partidos, a maioria deles ilustres desconhecidos, na acepção literal do termo, que prestigiavam o momentoso evento. Virgílio apresentou-se como líder de um "novo clero", que pretenderia se ver livre das peias partidárias.

Além de deixar claro, com as suas propostas hilariantes, que o presidente Lula tinha razão ao vetar o seu nome, sem querer Virgílio deu um forte argumento aos defensores do ponto decerto mais controvertido do projeto de reforma política em semi-hibernação na Câmara. É o que prevê o fim do voto em nomes para vereador, deputado estadual e federal. O eleitor votaria em listas partidárias fechadas, elegendo-se, por ordem de presença na lista, tantos candidatos quantas cadeiras a que as siglas fizerem jus na proporção dos votos recebidos.

Com isso, ficaria instituído, de vez, que o "dono do mandato" é o partido e não o mandatário. No curso de uma legislatura, quem trocasse de legenda perderia a cadeira, o que poria fim ao vaivém dos políticos pelas bancadas, que tanto desfigura o sistema de representação popular. Acabariam também, por definição, as desmoralizantes candidaturas avulsas ao comando das câmaras legislativas.