Título: O prefeito aperta o cinto
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/01/2005, Editorial, p. A3

O prefeito José Serra adotou a única decisão que cabia a um administrador sério, diante dos escombros a que a ex-prefeita Marta Suplicy reduziu as finanças municipais: contingenciou 31,6%, ou R$ 4,8 bilhões, do orçamento para 2005. Isso significa que esse dinheiro ficará indisponível, e só será liberado se, durante o ano, a arrecadação corresponder à receita inflada, aprovada pela Câmara Municipal. Ao mesmo tempo, o prefeito editou decreto de programação orçamentária e financeira que impõe limites franciscanos de gastos que os secretários municipais podem efetuar.

A ex-prefeita Marta Suplicy herdou de seu antecessor uma dívida de curto prazo de R$ 530 milhões e, por isso, execrou Celso Pitta, como político e como administrador. Para tirar a Prefeitura do buraco, criou e aumentou impostos em escala inédita, abusando ao extremo da capacidade contributiva dos munícipes. Mas cultivou, por frio cálculo político - já que na sua equipe havia economistas competentes, que não cometeriam o erro por inépcia -, o divórcio entre a política fiscal e a política de gastos. Ou seja, arrecadou muito para gastar ainda mais - fazendo obras que tinham claro objetivo eleitoreiro - e não para sanear as finanças públicas. O resultado foi que deixou uma dívida de cerca de R$ 1,9 bilhão, revelando-se uma administradora quatro vezes pior que Pitta.

E nem se pode dizer, a favor da ex-prefeita, que ela arruinou as finanças municipais por ignorar os princípios básicos da gestão financeira. Ela o fez deliberadamente. Contratou despesas - mesmo nos oito meses finais de seu mandato, período em que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) veda a prática, expressamente - sem dispor dos recursos correspondentes para sua quitação e, uma vez vencida nas urnas, tratou de cancelar os empenhos que sua administração não poderia honrar e constituíam prova de um delito que poderia levá-la a cumprir pena de prisão.

Foram cancelados pouco mais de 8,2 mil empenhos, ou autorizações de despesas, totalizando R$ 594 milhões. Foi esse o calote que Marta Suplicy deu nos fornecedores e empreiteiros da Prefeitura, empurrando o problema para o novo prefeito. A ex-prefeita, astutamente, utilizou-se de uma brecha da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe a transferência de restos a pagar de um exercício para outro, sem a prévia existência de recursos em caixa, mas não coíbe o artifício imoral do cancelamento dos empenhos.

O prefeito José Serra está buscando meios legais para saldar a dívida na medida das possibilidades de caixa da Prefeitura. Mas essa não é tarefa fácil. Terá, antes de mais nada, de evitar a armadilha óbvia que a administração anterior armou: não havendo mais os empenhos, ou seja, sem a autorização orçamentária, ele não poderá pagar o calote sem incorrer em crime previsto no artigo 37 da lei fiscal. Se não encontrar um artifício que contorne o mundéu deixado por Marta Suplicy, só restará a Serra esperar que os credores da Prefeitura tenham os seus pleitos reconhecidos pela Justiça para poderem ser ressarcidos por meio de precatórios.

Já teria sido muito ruim que Marta Suplicy tivesse quebrado a Prefeitura na inútil tentativa de se reeleger - encontrando, ainda, meios de dar o calote sem infringir a lei, como reconhece o especialista em finanças púbicas Raul Veloso. Pior fica quando o ex-secretário de Finanças Luis Carlos Fernandes Afonso afirma, como se verdade fosse, que a administração petista deixou nos cofres a importância necessária para pagar os débitos. Não admira que o prefeito José Serra tenha, finalmente, perdido a paciência: "Essa coisa de falarem que deixaram dinheiro é tudo trololó, conversa fiada."

Que o digam, além dos empreiteiros, os fornecedores do sistema de saúde que tiveram um terço do que tinham para receber empurrado para 2005. Ou os contratados e prestadores de serviço que não recebem desde setembro. Ou as creches conveniadas - que Marta Suplicy foi obrigada pelo Ministério Público e pela Justiça a contratar, porque não fornecia um serviço básico a que o Município está obrigado constitucionalmente -, muitas das quais foram levadas à bancarrota por não receberem desde agosto, enquanto outras 340 padecem um calote de R$ 14 milhões.

O prefeito José Serra iniciou sua administração apertando o cinto para colocar as finanças em ordem. É o que lhe cumpre fazer, depois de conhecer a herança maldita de Marta Suplicy.