Título: Defendo a moralização do sistema
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/01/2005, Vida &, p. A10

O médico Eleuses Vieira de Paiva, de 51 anos, foi eleito duas vezes, por unanimidade, para o cargo de presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), entidade que abriga 53 sociedades médicas especializadas. Uma das funções da AMB é conceder o título de especialista ao médico. Apesar do sucesso eleitoral, Paiva afirma que o segundo mandato, que termina neste ano, será o último para ele. "Já perdi a adolescência dos meus filhos por absoluta falta de tempo. A partir de agora vou me dedicar profissionalmente só ao meu consultório", diz. Caso isso de fato ocorra, ele pode ter certeza de que não será esquecido, para o bem ou para o mal. Paiva foi o principal responsável pela maior mobilização da classe médica já vista, o boicote às operadoras, que em dezembro completou um ano.

Qual é a sua avaliação do boicote dos médicos às operadoras?

O movimento está muito bom. Tem 90% de envolvimento dos Estados. Começamos há um ano em São José dos Campos, interior de São Paulo, e hoje são 27 Estados envolvidos de alguma forma nele. Na Bahia, por exemplo, um dos Estados pioneiros, a Sociedade Brasileira de Urologia conseguiu, por meio de ação, que as operadoras sejam obrigadas a adotar a CBHPM.

Eles devem ter conseguido uma liminar, certo? Mas liminar pode cair a qualquer momento...

Mesmo assim vale a pena. Se a CBHPM dura um mês, por exemplo, o tempo já é suficiente para fazer barulho e o consumidor entender que o novo rol de procedimentos é bom para ele.

Por que ele é bom?

Atualizamos a lista de exames e cirurgias que devem ser garantidos pelas operadoras. O número total não mudou muito: tiramos 800 que estavam defasados e acrescentamos cerca de 800 novos, como videolaparoscopia, alguns tipos de biópsia e correção cirúrgica por assimetria mamária.

Como está o movimento em São Paulo?

Vai bem também. Mas em São Paulo, assim como em todas as grandes capitais, é difícil mobilizar os médicos pelo número de profissionais. Para você ter uma idéia, cerca de 70% dos médicos estão nas capitais. É muita gente. Em São Paulo a distribuição é um pouco menor: metade na capital e metade no interior.

Quantos médicos existem em São Paulo?

São 117 mil no Estado. Atuando, 90 mil. O número é quase a metade em relação a todo o Brasil. Há 295 mil médicos atuando no País.

É possível afirmar que o boicote às operadoras é o maior movimento já feito pela da classe médica?

Não sei se é maior de todos os tempos, mas sou médico há 26 anos e nunca havia participado de um tão grande.

Como ele foi idealizado?

Há cinco anos, quando entrei na AMB, reuni as sociedades médicas especializadas do País, os sindicatos e os conselhos de ética médica para analisar o rol de procedimentos, já que não há nenhum órgão que faça isso. Não dava mais para fazer medicina da década de 70 em pleno século 21. No total, cerca de 500 pessoas em cargos-chave discutiram o assunto sob o ponto de vista técnico-científico, como quais seriam os procedimentos introduzidos na prática diária do médico. Já os aspectos econômicos, quanto cobrar por um procedimento, por exemplo, ficaram a cargo da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP (Fipe).

Quanto tempo foi preciso para o novo rol ficar pronto?

Três anos. Envolvemos mais ou menos 3 mil pessoas. Acho que o movimento deu certo porque quase todo mundo participou. Cada vez que terminávamos um capítulo , ele ficava na internet para ser criticado.

Disponível até mesmo para a Agência Nacional de Saúde (ANS)?

Não só eles tiveram acesso com todas as operadoras. Pelo fato de ter sido uma discussão aberta é que foi uma grande surpresa quando percebemos que dois grandes grupos se negaram a adotar nosso rol: o das seguradoras (as que trabalham com sistema de reembolso) e o das empresas de medicina de grupo (que têm os próprios serviços, como hospitais e médicos). Cada grupo trabalha com seu rol, defasado para os médicos. O movimento começou com a resistência das operadoras.

Vocês tentaram negociar?

É importante dizer que as operadoras de autogestão (empresas que patrocinam e gerem para os funcionários os próprios planos de saúde), que teoricamente não têm lucro, foram as primeiras a querer adotar o rol. Idem para as cooperativas (os donos são os próprios médicos). Estamos em plena negociação com eles. As seguradoras e as empresas de medicina de grupo quiseram no início conversar sobre reajustes, mas não sobre a atualização do rol de procedimentos.

Qual é o próximo passo?

Vamos analisar juridicamente se existe desequilíbrio econômico nos contratos entre as operadoras e os médicos. Dependendo das empresas, os médicos não têm reajuste entre 7 e 10 anos. Se for provado o desequilíbrio, podemos partir para uma ação judicial.

Como funciona hoje o contrato entre operadoras e médicos?

A maioria dos médicos não tem contrato assinado com as operadoras. Existe um acordo que diz que qualquer uma das partes tem de comunicar à outra de descredenciamento com 30 dias de antecedência. É muito pouco. Mas a ANS determinou que até fevereiro médicos e operadoras tenham contratos assinados.

O que pode ocorrer se o impasse entre médicos, seguradoras e empresas de medicina de grupo não for resolvido?

É uma boa pergunta. Se você tiver a resposta, me avise. Sei que estamos discutindo agora com as cooperativas e as de autogestão um contrato-padrão que está quase selado. Com as outras, não faço idéia do que pode ocorrer. Quero deixar claro que não quero o fim do sistema. Operadoras precisam dos médicos e vice-versa. Defendo a moralização do sistema.

Qual é a sua opinião sobre a nova geração de médicos?

Não tenho dúvida de que estamos formando profissionais despreparados para atuar na prática médica. Temos faculdades de medicina que não têm condições práticas nem técnicas de continuar funcionando. A Universidade de Nova Iguaçu, no Rio, por exemplo, há cinco anos recebe nota E no Provão e continua firme e forte.

O sr. acha que o número de faculdades de medicina é muito alto?

É um exagero. No último balanço da Associação de Escolas de Medicina, fechado em outubro, eram 137 escolas no País. De lá para cá, mais três foram abertas. É possível que, enquanto estamos conversando, mais umas duas estejam sendo abertas... E o número de vagas para residência (curso para o médico ter uma especialidade) não cresceu na mesma proporção. Cerca de 40% dos médicos ficam sem especialidade por falta de vaga.