Título: Há 30 anos, os censores sumiram
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/01/2005, Vida &, p. A10

No dia 4 de janeiro de 1975, quando O Estado de S. Paulo comemorava seu centenário, os censores que acompanhavam a edição do jornal faltaram ao trabalho. Estavam cumprindo a ordem dada pelo presidente Ernesto Geisel, para encerrar a censura prévia ao jornal. Essa arbitrariedade havia sido iniciada pouco mais de seis anos antes, em dezembro de 1968, logo após a edição do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), que radicalizou ainda mais o regime implantado pelo golpe de 1964. Com esse ato político, Geisel sinalizava que seu projeto de "distensão lenta, segura e gradual" do regime não era peça de retórica. Era a primeira demonstração prática da "abertura", que apenas se iniciava. E também o primeiro grande revés da extrema direita, a linha dura, liderada pelo general Sílvio Frota, o ministro do Exército.

Desde a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968, quando foi apreendida a edição que informava sobre o episódio, o Estado vinha sofrendo marcação cerrada da ditadura e pressões para uma autocensura, a exemplo de outros órgãos de imprensa. A maioria deles acatou passivamente a orientação vinda de Brasília, deixando de noticiar assuntos indesejados pela ditadura. Entretanto, os jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, em São Paulo, e a Tribuna da Imprensa, no Rio, recusavam-se a enganar seus leitores. Prosseguiram na cobertura de temas proibidos.

Em 1973, com o início do debate sobre a sucessão do general Médici no comando do regime militar, a censura se mostrou ainda mais rígida. Censores passaram a atuar diretamente nas redações dos três jornais, obstruindo a publicação de matérias consideradas "subversivas". No princípio, dispostos a dar um recado aos leitores sobre as limitações a que estavam sujeitos, os dois jornais paulistas passaram a publicar certos assuntos fora de suas páginas habituais. Era uma forma dissimulada de comunicar ao público que algo deixara de ser publicado por interferência da censura.

As primeiras tentativas não atingiram plenamente seu objetivo de denunciar a farsa imposta pela ditadura, que não admitia publicamente a existência da censura. O estratagema inicial de publicar as cartas dos leitores nos espaços anteriormente reservados às matérias proibidas, fora do domingo, seu dia rotineiro na época, não foi percebido por todos os leitores. Uma delas, forjada na redação, falava da "inexistência de rosas azuis" e foi publicada no alto da primeira página, no lugar de uma matéria vetada que informava sobre a renúncia do ministro da Agricultura, Cirne Lima. Ao lado, um pretenso anúncio da Rádio Eldorado intitulado Agora é samba. Muitos entenderam o recado, mas houve quem se entusiasmasse com a campanha pelo cultivo de rosas azuis.

Em junho de 1973, Julio de Mesquita Neto, então o diretor-responsável de O Estado de S. Paulo, sugeriu a publicação de poemas nos espaços das matérias vetadas. No dia 29 daquele mês, na página reservada aos editoriais (Notas e Informações) saía o primeiro poema em local destinado a texto proibido: Y-juca Pirama, de Gonçalves Dias, ocupava o espaço do editorial intitulado A censura no cinema, o qual comentava o absurdo recolhimento de dez filmes anteriormente liberados, alguns deles financiados pelo próprio governo através do INC e do Ministério da Educação. Enquanto isto, o Jornal da Tarde, na época dirigido por Ruy Mesquita, passava a publicar receitas culinárias em seus espaços nobres com o mesmo objetivo de advertir o leitor para a censura.

Durante o mês de julho, a poesia retomou o espaço que já havia desfrutado nos jornais do século 19. Em meio ao noticiário político e econômico, tanto a poesia como o teatro marcavam forte presença no Estado: Olavo Bilac teve o poema O Caçador de Esmeraldas publicado 27 vezes, enquanto A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, figurou em 13 edições. Outros poetas foram prestigiados, até que no dia 2 de agosto de 1973 saía publicado pela primeira vez um trecho de Os Lusíadas, de Camões. Vinha para tapar o vazio deixado por um editorial vetado que criticava a eventual indicação de um militar para o Ministério da Justiça. Desse dia até 4 de janeiro de 1975, os versos de Camões seriam publicados mais 655 vezes, artifício que passou a ser reconhecido como um código de denúncia da censura.

ASSUNTOS PROIBIDOS

Em um levantamento feito pela professora Maria Aparecida de Aquino em sua tese de mestrado na Universidade de São Paulo (Censura, Imprensa, Estado Autoritário), no período compreendido entre 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975 foram censuradas 1.136 matérias de O Estado de S. Paulo, mais da metade relativas ao noticiário político geral (52,91%). Até mesmo a divulgação da ocorrência de um surto de epidemia de meningite, absolutamente necessária para que a população se prevenisse contra ela, foi considerada "subversiva" e vetada. Só no ano seguinte o governo admitiu o fato, ao promover uma campanha de vacinação preventiva.

Em 1974, a Federação Internacional de Jornais outorgou o prêmio Pena de Ouro da Liberdade ao jornalista Julio de Mesquita Neto. Era o reconhecimento da comunidade internacional de jornalistas à luta travada no Brasil pelos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde contra a censura. Mas, como o assunto era censura, nem mesmo o discurso de agradecimento lido em uma cerimônia realizada em Copenhague pôde ser veiculado no dia 4 de setembro de 1974. Em seu lugar os leitores encontraram mais versos de Os Lusíadas.

No dia 21 de agosto de 1980, a União Federal foi condenada a indenizar os jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde pela imposição discriminatória da censura prévia no caso do noticiário sobre a demissão do ministro Cirne Lima nos dias 11 e 12 de maio de 1973. Só os dois jornais foram proibidos de publicar a notícia.

Era a segunda vez que o Grupo Estado ganhava uma ação contra uma arbitrariedade do governo. Em 1929 o jornal O Estado de S. Paulo havia ganho uma ação de indenização por suspensão ilegal de publicação e circulação ocorrida cinco anos antes, em 29 de julho de 1924, alguns dias após a retomada da cidade de São Paulo pelo governo. Julio Mesquita, diretor responsável pelo jornal na época, chegou a ser preso pelo governo de Artur Bernardes apenas pelo fato de o jornal ter mantido diálogo com os militares rebeldes que haviam ocupado a cidade durante os 23 dias de duração da Revolução de 1924.