Título: Plantar a legalidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2005, Editorial, p. A3

O governo está arriscado, mais uma vez, a ter de se curvar diante de um fato consumado: a produção de soja transgênica por agricultores que não terão legalizado o plantio. Até dia 31, quem fizer esse tipo de cultivo com sementes da safra de 2004 deverá assinar um "termo de compromisso, responsabilidade e ajustamento de conduta" para regularizar a lavoura. Quem não o fizer ficará sujeito a penalidades, mas até dia 18 as delegacias do Ministério da Agricultura haviam recebido menos de metade dos documentos assinados na safra anterior, segundo levantamento do jornal Valor.

Os agricultores que não assinaram o termo de compromisso talvez acreditem que as autoridades, mais uma vez, encontrarão um meio de acomodar a situação, para não deixar na ilegalidade uma produção de vários milhões de toneladas.

Se for esse o caso, o governo será desmoralizado, evidenciando-se, mais uma vez, que no Brasil nem todas as leis são para valer e que é fácil afrontar com êxito a legalidade.

Pela lei, quem não assinar o documento ficará impedido de obter empréstimos e financiamentos das instituições do sistema de crédito rural, não terá acesso a benefícios fiscais ou de crédito e não poderá participar de programas de repactuação ou parcelamento de dívidas tributárias.

Essas punições estão relacionadas na Lei n.º 11.092, de 12 de janeiro. O infrator ficará sujeito, além disso, a multa de pelo menos R$ 16 mil, de acordo com a Lei n.º 10.688, de 13 de junho de 2003.

Até dia 18 foram assinados 34.358 termos de compromisso pelos produtores de soja modificada geneticamente. Na safra 2003-2004, foram firmados 83.594 documentos.

De acordo com as avaliações correntes, a produção de soja transgênica deve crescer na safra 2004-2005 e chegar a cerca de 12 milhões de toneladas, quase um quinto da safra estimada. Mas a legalização do plantio, segundo as últimas informações, continua muito distante do que se poderia razoavelmente esperar.

Nos anos anteriores, o governo federal, posto diante do fato consumado, encontrou meios de legalizar a produção e permitir o escoamento da safra. Alguns podem ter entendido que essa atitude foi simplesmente realista. As autoridades, segundo essa interpretação, não poderiam deixar fora do mercado alguns milhões de toneladas de produto geneticamente modificado. Milhares de agricultores ficariam impedidos de vender sua safra, haveria uma crise e, além disso, o País deixaria de aproveitar uma importante fonte de receita cambial.

O argumento do "realismo" tem certamente um peso considerável. Mas também é verdade que os produtores aprenderam que poderiam plantar o que quisessem, dentro ou fora da lei, que a história teria sempre um final feliz para eles, porque as autoridades não ousariam entrar em conflito com um dos setores que lideram as exportações brasileiras.

O governo mostrou a propensão a ceder, mais uma vez, quando se atrasou a votação da Lei de Biossegurança. Havia chegado a época de semear e o plantio de sementes modificadas geneticamente continuava fora da lei. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou assinando uma nova medida provisória para regularizar o plantio. Pouco antes, no entanto, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, e outros representantes do Executivo haviam dito e repetido que não haveria nova medida provisória.

Se esperavam com isso pressionar os congressistas, ou estimular os produtores a exercer essa pressão, enganaram-se. A votação continuou emperrada, o projeto não foi aprovado a tempo e a saída foi mesmo a edição de nova MP.

A retórica sobre o Estado de Direito é uma tradição carinhosamente cultivada pelos políticos brasileiros. Essa retórica é desmoralizante, no entanto, quando falta disposição para cumprir e impor o cumprimento da lei. Quando se pensa nos efeitos de longo prazo, fica mais fácil entender que o verdadeiro realismo não consiste na improvisação e na leniência, mas na preservação da legalidade. O ministro da Agricultura - e por que não também o presidente da República? - deveria, neste momento, deixar claro que não haverá, desta vez, manobra para acomodar uma situação ilegal. O governo ganhará com isso e o País também.