Título: Fala de Bush levanta críticas e ironia
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2005, Internacional, p. A15

Menos de 24 horas depois de o presidente George W. Bush ter iniciado seu segundo mandato com um discurso que deixou até republicanos perplexos, pelo tom messiânico e a audácia da promessa feita pelo líder americano de apoiar militantemente todos os que se levantarem contra a tirania no mundo, políticos da oposição e mesmo algumas vozes conservadoras trouxeram o debate de volta ao terreno das duras realidades que Washington enfrenta.

Falando num dia em que o reverendo Billy Graham manifestou sua crença de que a reeleição de Bush foi obra da divina providência, durante um serviço religioso que marcou o fim dos festejos da posse presidencial, o senador democrata por Nova York, Charles Schumer, disse que quando os trabalhos legislativos forem retomados, na semana que vem, os democratas estarão prontos para combater o que ele chamou de ¿políticas extremas dos republicanos¿.

A ambição da agenda externa enunciada por Bush provocou comentários sarcásticos do ex-conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca Zbigniew Brzezinski, um conselheiro do Centro de Estudos Estratégicos Internacional que tem reputação de falcão entre os democratas.

¿Se tomarmos o discurso literalmente, a implicação é que nos estamos comprometendo com uma cruzada global contra vários Estados com os quais temos todo tipo de intenções comuns¿, disse ele. ¿Temos, por exemplo, um enorme interesse na estabilidade da China, mas a China não é uma democracia. O que vamos fazer sobre o Tibete? E em relação à Rússia, com quem temos interesses comuns no combate ao terrorismo, mas que trata os chechenos de maneira tirânica? E o que vamos fazer sobre a opressão dos palestinos e seu desejo por liberdade?¿, perguntou Brzezinski, falando à rede de televisão pública dos EUA.

O experiente Brzezinski disse que tomou o discurso mais como retórica e sintoma de que a administração não tem uma doutrina estratégica genuína nem está em posição de estabelecer prioridades. ¿Se a retórica fosse levada a sério, teríamos vários Iraques e estaríamos expostos militarmente num grau devastador¿, ponderou. ¿Ter crenças profundas é uma coisa. Mas ter capacidade para levá-las adiante é outra¿, acrescentou. ¿Será que temos capacidade para levar adiante essa cruzada global (contra a tirania)?¿

Peggy Noonan, que escreveu alguns dos discursos mais inspirados feitos pelo presidente Ronald Reagan sobre os ideais americanos da liberdade e democracia, se mostrou espantada com a falta de conexão entre a retórica de Bush e a realidade. Noonan observou com sarcasmo, num artigo publicado ontem no conservador Wall Street Journal, que Bush e seus assessores parece que estão ¿inebriados pelo sentido de missão¿ e projetam a ¿sensação de que há poucas barreiras legítimas aos desejos nascidos da bondade de seus corações¿. Ela recomendou que o presidente e seus conselheiros na Casa Branca ¿se acalmem, respirem fundo e ponham o pé no chão¿.

A sensação de que o presidente americano pode estar embarcando o país num caminho perigoso, que pode levar a novos conflitos que os EUA não têm hoje como travar e a um desgaste ainda maior da credibilidade americana, provocou críticas mais agudas. O colunista David Ignatius, do Washington Post, alertou para o que descreveu como ¿a preocupante arrogância¿ não apenas do discurso de Bush, mas das respostas evasivas e freqüentemente equivocadas que a secretária de Estado designada, Condoleezza Rice, deu durante os dois dias de sua sabatina de confirmação, perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Ignatius criticou a ¿insularidade¿ do time de conselheiros escalado para o novo gabinete de Bush e condenou o comportamento desses assessores, que, segundo ele, se comportam como se a reeleição do presidente os tivesse dispensado da obrigação de explicar as políticas do governo à população. ¿Não se pode ter um mandato para políticas que não foram explicadas ao país¿, afirmou .