Título: Mercosul desfigurado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2005, Editorial, p. A3

M inistros brasileiros e argentinos reúnem-se amanhã, no Rio de Janeiro, para discutir a criação de um sistema de salvaguardas comerciais entre países do Mercosul. O governo brasileiro, segundo informações que circulam desde a semana passada, tende a aceitar a proposta argentina, que poderá tornar ainda menos livre o comércio entre os países do bloco e ainda mais sem sentido o rótulo oficial de união aduaneira. A reunião foi confirmada em Buenos Aires, no dia 10, num discreto encontro bilateral de altos funcionários. A delegação brasileira, chefiada pelo secretário-geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, admitiu a agenda proposta pelo governo argentino e os dois lados, portanto, deverão discutir, mais uma vez, o tema das "assimetrias" entre os maiores sócios do Mercosul. O governo do presidente Néstor Kirchner insiste há vários meses nessa agenda. Desde o início de 2004, as autoridades de Buenos Aires impuseram barreiras a vários produtos brasileiros, alegando invasão de mercado. Em alguns casos, conseguiram que os empresários do Brasil, pressionados também por Brasília, aceitassem restrições "negociadas". Concessões desse tipo são parte da geopolítica do governo brasileiro, desde que o terceiro-mundismo voltou a ser levado a sério em Brasília. Se os exportadores brasileiros ainda tiveram desempenho razoável no comércio com a Argentina, apesar das barreiras, foi porque sobrou, a seu favor, um importante diferencial de competitividade. Esse diferencial não resulta de subsídios, que o Tesouro nacional não pode conceder, mas de investimentos e de reformas que deram novo perfil às empresas sobreviventes da abertura de mercado. Em alguns casos, no entanto, a restrição aos produtos brasileiros abriu espaço, no mercado argentino, a importações provenientes de terceiros países. O governo brasileiro foi forçado a dar atenção ao fato por informações e comentários publicados em jornais. O protesto contra esse desvio comercial foi a única demonstração de firmeza de Brasília desde que o governo argentino começou a ditar as condições do intercâmbio bilateral. Em setembro o governo argentino apresentou um ambicioso conjunto de exigências, consolidando idéias que já estavam em circulação. Além de um mecanismo de salvaguardas que obviamente não pode interessar ao Brasil, as autoridades argentinas propuseram a criação de um código de investimentos. Por esse código, os investidores estrangeiros seriam impedidos de concentrar seu capital no país de sua escolha. É uma exigência absurda, mas o assunto não foi enterrado, porque o governo brasileiro preferiu evitar uma resposta definitiva a todas as pretensões apresentadas por Buenos Aires. No fim do ano, as autoridades argentinas mantiveram a pressão e fizeram suspense a respeito de seu comparecimento à reunião de cúpula de Ouro Preto. A discussão das salvaguardas foi oficialmente evitada, naquela ocasião, mas com o compromisso de uma negociação em janeiro. Foi com base nesse compromisso que autoridades brasileiras e argentinas confirmaram, no encontro do dia 10, a reunião da próxima semana. Segundo as informações dos últimos dias, o governo brasileiro prepara uma contraproposta relativa à criação das salvaguardas. A solução pode não ser exatamente a pretendida pelo governo argentino, mas, ainda assim, representa uma concessão incompatível com os objetivos do Mercosul. É razoável que as autoridades brasileiras procurem cooperar com a Argentina, reconhecendo suas dificuldades e as pressões internacionais que o país enfrenta desde a declaração do calote em dezembro de 2001. Desfigurar cada vez mais o Mercosul, no entanto, não é a forma correta de cooperar. Não se fortalecerá o Mercosul tratando os empresários brasileiros como se tivessem agido com deslealdade ao investir e esforçar-se para ser competitivos. O problema não está do lado brasileiro - que ainda precisa fazer muito mais para crescer no comércio mundial. O problema está do outro lado, onde o governo e vários segmentos empresariais não fizeram sequer o mínimo necessário para atuar dentro de um bloco regional.