Título: A lei orgânica da PF
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2005, Editorial, p. A3

P ouco menos de um ano após a greve dos agentes da Polícia Federal, que por várias semanas tumultuaram os principais aeroportos internacionais do País, promovendo operações-padrão que submeteram os passageiros às mais variadas formas de constrangimento, o governo finalmente divulgou sua proposta de lei orgânica para a corporação. Dois anteprojetos elaborados por uma comissão nomeada em abril de 2004 - publicados no Diário Oficial da União de segunda-feira - ficarão em consulta pública durante 15 dias.

A maior reivindicação dos policiais, além da equiparação de seus vencimentos com os dos delegados, era a criação de um cargo único, de "agente especial", que abrangeria os cargos hoje existentes. Na época, o governo prometeu estudar o pleito, em troca do fim da greve. Mas, como essa pretensão esbarra em diversos obstáculos jurídicos, ele teve o bom senso de rejeitá-la. Como compensação, os anteprojetos extinguem o cargo de escrivão, outra antiga aspiração dos policiais, e propõem dois modelos de carreira. Um deles preserva a atual estrutura funcional da corporação, com carreiras de papiloscopista, agente, perito e delegado. O outro modelo prevê cargos de delegado, delegado-executivo e delegado especial, dando também aos agentes a mesma classificação.

Além da reestruturação dos cargos e atribuições da carreira policial, o anteprojeto reformula o regime disciplinar da corporação. Para tentar evitar a repetição dos problemas causados pelas operações-padrão do ano passado, os anteprojetos autorizam a cúpula da Polícia Federal a suspender de suas funções os agentes e os delegados que exercerem o direito de greve "de modo abusivo". Como esse conceito é subjetivo, podendo ser definido conforme as conveniências dos intérpretes, só o tempo dirá se o governo agiu corretamente. O mais lógico teria sido aproveitar a ocasião para disciplinar, de modo objetivo, greves e manifestações de policiais federais.

Outra iniciativa aparentemente concessiva, por parte do governo, é o abrandamento das penas administrativas para os agentes e delegados que cometerem infrações no exercício de suas funções. Segundo os anteprojetos, os infratores poderão "trocar" eventuais suspensões pelo pagamento de multas, descontadas diretamente de seus holerites. No valor de até 50% da remuneração, elas somente poderão ser aplicadas quando a pena de suspensão não ultrapassar o prazo de 20 dias e houver necessidade de permanência em serviço do policial. Com a receita das multas, a Polícia Federal terá de financiar "programas reeducativos" para quem for punido, entre outras irregularidades, por possibilitar a fuga de presos, praticar a usura e manter relações de amizade ou exibir-se em público "com pessoas de notórios e desabonadores antecedentes criminais".

Uma das promessas de campanha do PT era transformar a Polícia Federal na versão brasileira do FBI, com a simplificação de procedimentos administrativos, entre outras medidas. Mas, pelos mesmos motivos que o impediram de criar o cargo único de agente especial, o governo também optou por não revogar nem o inquérito policial nem a figura jurídica do indiciamento - duas providências que dependem da modernização do Código de Processo Penal que foi editado em 1941, quando eram outras as condições socioeconômicas do País.

O mais importante, na proposta de lei orgânica da Polícia Federal, diz respeito aos mecanismos de autofiscalização da instituição. A autonomia dada ao corregedor-geral é tão grande que sua nomeação passará a ser feita pelo próprio presidente da República. Já os corregedores regionais serão nomeados pelo ministro da Justiça. Com essas duas medidas, e dependendo dos nomes a serem escolhidos para esses cargos, a Polícia Federal poderá finalmente livrar-se do estigma que sempre a perseguiu. Ou seja, a reputação de ser uma corporação minada pelo tráfico de influência e por interesses políticos, de tal modo que uma investigação rigorosa como a Operação Anaconda, que levou à prisão o juiz corrupto João Carlos da Rocha Mattos, é ofuscada por uma pixotada como a transferência dos agentes que prenderam em flagrante, numa rinha de galos, o publicitário Duda Mendonça.

Com os aperfeiçoamentos que o projeto requer, a lei orgânica para a Polícia Federal poderá contribuir para melhorar a imagem pública da instituição.