Título: O Brasil cede, de novo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2005, Editorial, p. A3

R eunidas no Rio de Janeiro para discutir os principais temas do contencioso comercial entre os dois países, especialmente o regime de salvaguardas proposto em setembro do ano passado pelo ministro Roberto Lavagna, as delegações do Brasil e da Argentina chegaram a um resultado prodigioso: num comunicado conjunto de duas laudas, não foi impressa, uma única vez, a palavra "salvaguarda". Fica-se sabendo, no entanto, que "o governo brasileiro apresentou uma proposta de mecanismo (sic) para a expansão equilibrada do comércio bilateral e a integração produtiva de suas economias", e que "o governo argentino examinará esta proposta no contexto de suas apresentações anteriores".

Tradução da tortuosa linguagem diplomática: o Brasil, que se opunha vigorosamente à introdução de salvaguardas no Mercosul, entendendo que essas medidas seriam a pá de cal da união aduaneira, acabou cedendo parcialmente ao pleito argentino. E o governo argentino vai comparar a proposta brasileira com a que fez no ano passado o ministro da Economia, já que o Brasil não concordou com restrições automáticas ao comércio, sempre que haja variações bruscas no PIB ou no câmbio dos dois países. O Brasil, agora, admite uma "cláusula de ajuste" semelhante à adotada pela OMC sempre que as exportações de um país ameaçarem a indústria do outro. Mas um porta-voz do ministro da Economia já declarou que a Argentina não se contenta com concessões parciais. Lavagna, mal-acostumado, quer que o Brasil ceda de A a Z.

O fato é que as salvaguardas têm sido usadas amplamente pela Argentina, ainda que não existam na estrutura institucional do Mercosul. E as cotas e as tarifas impostas por Buenos Aires às importações de produtos brasileiros, como calçados, televisores e produtos da linha branca, são medidas protecionistas que não cabem numa união aduaneira, mesmo imperfeita como o Mercosul.

As indústrias argentinas que se sentem ameaçadas pelas exportações brasileiras são ineficientes. Tiveram cerca de uma década para se modernizarem, adaptando-se ao regime alfandegário da união aduaneira. Continuam sem poder de competição, por falta de investimentos e de dinamismo - e esses dois fatores não surgirão do nada simplesmente porque os produtos brasileiros passam a ser sobretaxados. As salvaguardas apenas perenizam a ineficiência e produzem desvio de comércio. Afinal, as geladeiras e os televisores que a Argentina deixa de comprar do Brasil são adquiridos de outros produtores, o que não resolve o problema da indústria argentina e prejudica a indústria brasileira.

Pelo menos disso os negociadores brasileiros estão cientes. Se não foram capazes de resistir à pressão para instituir "mecanismo para a expansão equilibrada do comércio bilateral", pelo menos estão dispostos a evitar que, no caso de restrições a exportações brasileiras, os produtores de outros países ganhem o mercado argentino. Disso, pelo menos, o governo brasileiro não pode abrir mão.

Não deve, também, concordar com o código de conduta para investidores estrangeiros no Mercosul, proposto pela Argentina. A proposta argentina ultrapassa as linhas fixadas, por exemplo, pela OCDE, ao pretender limitar o direito das empresas de transferir suas operações de um país para outro, ou ao exigir que a empresa que decida se instalar num país, ou nele expandir seus negócios, ofereça contrapartidas ao outro país. A Argentina tem recebido poucos investimentos estrangeiros diretos porque seguiu políticas macroeconômicas que desembocaram na moratória. Continuará à margem da comunidade financeira internacional porque fez um plano de renegociação da dívida repelido pela maioria dos credores.

Inteiramente outro é o caso do Brasil. Aqui segue-se uma política macroeconômica sensata e o País tem credibilidade internacional. Não há por que, nessas condições, aceitar as condições propostas pela Argentina, que restringiriam o crescimento brasileiro.

O governo brasileiro, cedendo na questão das salvaguardas e abrindo caminho para o código de conduta dos investidores, na verdade não está ajudando a Argentina a sair da crise. Se o objetivo dos dois governos é, como afirma o comunicado conjunto, mais do que tratar de questões pontuais, salientar o caráter estratégico da relação bilateral, o que têm a fazer é respeitar a letra e o espírito dos tratados e acordos que assinaram, e não desvirtuá-los ainda mais.