Título: Entre vaias e aplausos, Lula reage a 'filhos do PT que se rebelaram'
Autor: Vera Rosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2005, Nacional, p. A4

Pela primeira vez desde a estréia do Fórum Social Mundial, em 2001, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi hostilizado por ex-companheiros do PT ao participar do encontro e falar de improviso para uma platéia de cerca de 12 mil pessoas, no Ginásio Gigantinho. Durante 35 minutos, Lula discursou entre vaias e aplausos. Militantes do PT ocuparam as arquibancadas e conseguiram abafar os protestos de um grupo de radicais do PSTU, do PSOL e dos sem-terra. Mas Lula acusou o golpe: disse ter os "ouvidos calejados" desde os tempos em que era sindicalista. "Os que estão aqui e são de fora, não se assustem", pediu o presidente, dirigindo-se aos estrangeiros presentes ao lançamento da campanha pelo cumprimento das Metas do Milênio, promovida por uma coalizão de organizações não-governamentais batizada de "Chamada Global para a Ação contra a Pobreza". Na tentativa de conter a ira de cerca de 200 manifestantes, ele apelou até mesmo para a passagem bíblica do filho pródigo. "Esses que não querem ouvir são filhos do PT que se rebelaram. Isso é próprio da juventude. Um dia eles amadurecerão e à casa retornarão. Estaremos de braços abertos para recebê-los."

Lula se referia aos integrantes do PSTU e do PSOL, dois partidos criados por políticos expulsos das fileiras petistas. Do lado direito da arquibancada, porém, o pequeno e barulhento grupo não dava trégua. Aos gritos de "traidor, traidor", os radicais exibiam o jornal de extrema-esquerda Resistência Popular, com uma foto de Lula, sorridente, cumprimentando o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush.

Vestido com uma jaqueta branca, Lula pregava paz e fazia um discurso mais à esquerda, defendendo um relacionamento maior com os vizinhos da América do Sul, sem subordinação aos EUA. Chegou a afirmar até mesmo que o Brasil "viveu o tempo inteiro olhando para a Europa e para os EUA, de costas para a América do Sul e para a África" e disse ter mudado o quadro. Nada adiantava.

Enquanto os xiitas protestavam, com os punhos cerrados, os militantes do PT - a maioria usando camisetas vermelhas com a inscrição "100% Lula" - levantavam e sentavam em movimentos de onda, como fazem as torcidas nos estádios de futebol. O indefectível hino das campanhas de Lula, mais uma vez, foi entoado. "Olê, olê, olá, Lulaaaa, Lulaaaaa", cantavam. Os radicais reagiam com vaias. Chamavam o presidente, que hoje estará no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, de "serviçal do imperialismo".

"Este barulho que vocês estão ouvindo agora eu ouço desde 1975", observou Lula, numa alusão aos tempos em que assumiu a presidência dos Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, no ABC paulista. "Os meus ouvidos já estão calejados, preparados. Eu, de vez em quando, vejo isso como uma harmonia gostosa. É um gesto democrático, feito pela boca daqueles que não têm paciência para ouvir a verdade", disse. Mesmo com diplomacia, Lula deu algumas estocadas. "Tem gente que acha que a campanha (contra a fome) é proselitismo. É proselitismo para quem come as calorias e as proteínas necessárias."

URUCUBACA

Definindo-se como "um homem perseverante" - que prefere dar passos pequenos a um grande -, Lula fez uma espécie de prestação de contas de seu governo. Falou dos avanços na área social, citou os 6,5 milhões de benefícios do Bolsa-Família e, mais uma vez, disse ter recebido uma herança maldita, com dívidas monstruosas. "Perdi três eleições para ganhar uma. Ganhei uma eleição, mas o que tem de urucubaca torcendo pra gente não dar certo eu tenho de levantar figa para dizer 'Pelo amor de Deus'", exclamou, com os braços abertos.

No estádio, faixas "contra a Alca e o neoliberalismo chamavam a atenção. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, também não foi poupado.

Estrategicamente posta atrás de Lula, uma bandeira gigante do Brasil estendia-se pelos degraus da arquibancada. Depois do discurso, estrangeiros da Global Call fizeram perguntas para o presidente sobre temas que iam dos motivos para o pagamento da dívida externa à luta contra a pobreza. Os manifestantes que vaiaram Lula não ficaram para ouvir as respostas. No fim, tudo terminou em samba. As passistas da Portela homenagearam o presidente com o tema do carnaval deste ano, dedicado às Metas do Milênio.