Título: O ministro e os fatos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2005, Editorial, p. A3

D iante das contundentes críticas formuladas pelos mais variados setores sociais ao seu projeto de reforma universitária, o ministro da Educação, Tarso Genro, optou por refutá-las por meio de dois artigos na imprensa, um publicado no Globo e outro no Estado, quinta-feira, na página ao lado. Apesar de diferentes na forma, os dois textos contêm os mesmos argumentos e sua principal afirmação é a de que a proposta do governo para o ensino superior só reitera o que a Constituição determina para o setor.

Por isso, diz o ministro, na medida em que o projeto "adota algumas orientações" (sic) da Constituição, ele não tem "sentido ideologicamente discriminatório ou autoritário", destacando-se por seu caráter "democrático e republicano". Em primeiro lugar, o ministro precisa explicar essa estranha hermenêutica jurídica que permite ao governo escolher as "orientações constitucionais" que adota ("algumas") e, implicitamente, as que se exime de adotar. Depois, seria o caso de explicar a utilização dos jargões "politicamente corretos". Utilizada cada vez mais por muitos dos ministros do atual governo, essa estratégia retórica, como afirmou o economista Rogério L. F. Furquim Werneck em artigo no Estado de sexta-feira, resulta de "uma visão obtusa que (...) parece pressupor que qualquer sandice se torna respeitável quando rotulada de republicana".

Por isso, soa ingênua ou provinciana - preferimos não pensar em má-fé - a afirmação do ministro, no sentido de que o governo do PT tinha de reformar a Universidade brasileira para subordiná-la "à atual ordem jurídica". O mesmo já não se pode dizer quando Genro, a pretexto de justificar a ampliação da influência da "sociedade civil" nas decisões das instituições de ensino superior, defende a interlocução de seus órgãos decisórios não com "movimentos abstratos", mas com "pessoas jurídicas" preparadas para o "convívio democrático". Entre elas, surpreendentemente, Genro cita, em primeiro lugar, o Movimento dos Sem-Terra (MST), uma entidade conhecida por sua vocação antidemocrática e que jamais se constituiu formalmente, no plano jurídico, só para evitar processos judiciais por seus sucessivos atentados à propriedade privada e à ordem pública.

O ministro também falseia os fatos quando, ao justificar a criação dos Conselhos Comunitários Sociais, afirma que eles não comprometerão a autonomia das universidades. Por serem consultivos e não deliberativos, diz Genro, esses conselhos se limitarão a "opinar" e "encaminhar subsídios para a fixação de diretrizes e para a política geral da universidade". Trata-se de mais um jogo de palavras, entre tantos outros, pois, no momento em que grupos estranhos à vida acadêmica ingressarem em seus órgãos colegiados, as discussões serão condicionadas por interesses corporativos e pressões ideológicas.

A meritocracia, princípio básico da vida acadêmica, também é atingida mortalmente pela adoção da reserva de 50% das vagas para alunos oriundos de escolas públicas e estudantes negros e índios. Ao refutar a crítica de que essa medida criará universitários de primeira e segunda classe, o ministro faz uma confusa distinção entre aprovação e classificação nos vestibulares. "Para ser aprovado num processo seletivo, o aluno tem de alcançar determinado número de pontos. Alcançados esses pontos, ele está aprovado. O que acontece é que não há vagas suficientes para todos os aprovados e apenas os mais bem (sic ) classificados podem, efetivamente, ingressar na universidade."

A mesma confusão também pode ser vista quando o ministro, mais uma vez não escondendo seus preconceitos ideológicos, defende a tese de que a lógica da economia de mercado é incompatível com a lógica da vida acadêmica. A universidade, diz ele, "precisa lidar com a dialética do mesmo e do outro (sic), sendo ela mesma na sua autonomia contraditória, e sendo sempre, também, a sociedade com suas oposições de interesse". (Em termos de clareza de linguagem, o ministro está superando os redatores de atas do Copom.)

Afirmações como essas dão a dimensão da envergadura dos responsáveis pela reforma da Universidade brasileira. Em vez de identificar as tendências de transformação que vêm ocorrendo no ensino superior em todo o mundo, seja em relação aos currículos e projetos pedagógicos, seja quanto aos modelos organizacionais das instituições educativas, nossos reformadores fazem o oposto, invocando jargões do passado e manipulando os fatos para adequá-los ao seu tosco discurso político.