Título: Tudo como dantes...
Autor: Claudio de Moura Castro
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

O jovem professor esbravejava de raiva: "Absurdo! Onde já se viu um país sério onde se permite que a congregação da faculdade delibere apenas usando a língua inglesa? Em meu próprio país, se eu quiser ser ouvido pelos demais professores, tenho de aprender inglês!"

De fato, neste simpático país dos trópicos havia esta anomalia lingüística, contrariando todas as leis locais. Mas isto até era o de menos, diante da maneira pela qual se havia instalado aquele curso superior. Somente a força dos militares que estavam por trás de tudo explicaria tamanho rol de irregularidades. Segundo muitos - dentre os quais se incluía o nosso zangado assistente -, era o cúmulo do entreguismo.

Os milicos trouxeram dos Estados Unidos um professor e deram a ele carta branca para contratar quase todos os outros professores no exterior. Noventa por cento dos professores-titulares foram contratados no estrangeiro. E mais, pagos regiamente em dólar, o que já era proibido no país desde a Constituição de 1830.

O caso destas contratações foi parar nas mãos de um jovem procurador, que ficou horrorizado com as arbitrariedades dos militares. Pior, quando foi ler o contrato, descobriu que havia uma cláusula rescisiva em favor do tal professor americano. Esta permitia a ele cancelar seu contrato, bem como os de todos os demais, se a seu juízo houvesse uma queda na qualidade do ensino. E o cancelamento seria unilateral, pois continuariam a receber seus salários, mesmo de volta aos países de origem.

Diante do parecer indignado do jovem advogado, os militares chamam-no para uma entrevista. Chave de galão? Boa conversa? Nada disso, o advogado convenceu-se do sonho dos idealizadores do tal projeto. Passou então a buscar uma forma legal para pagar aos gringos e para comprar equipamentos no exterior, sem as formalidades das licitações públicas. Apaixonou-se tanto pelo projeto que virou professor.

No cotidiano da escola, os gringos sempre foram mais bem tratados do que os da terra. Brigam no fundo do quintal duas esposas de professores. Uma delas é mulher de um capitão que ensina na escola. A outra é mulher de um professor americano. A origem da briga já foi esquecida, talvez um cachorro que estragou o jardim do vizinho, mas o caso termina no gabinete do coronel diretor. Percorrendo o anuário militar com os nomes de capitães, exclama: "Muitos, pois não? Quantos professores neste país são capazes de ensinar a matéria do americano? Nenhum? Ora, então diga a sua mulher que agüente firme ou faça as pazes com a do americano."

Em outra ocasião, um estrangeiro foi surpreendido no seu gabinete com uma secretária no colo. Os defensores da virtude e do pudor irrompem na sala do diretor. Mas o argumento é o mesmo: "Temos algum melhor para substituí-lo? Não? Pois, então, que o intendente providencie uma segunda cadeira na sala do professor, para que a moça não tenha que se sentar no seu colo."

Para a satisfação e o contentamento de muitos, este país finalmente conseguiu cortar o mal pela raiz: foi enormemente dificultada a contratação de professores estrangeiros. Ponto, parágrafo. Era preciso botar estes gringos no seu lugar!

Mas vamos dar nomes aos bois.

O país era o Brasil, lá pelos fins dos 40.

O militar era o, então, coronel Montenegro, homenageado pela Capes como um dos pais da ciência e tecnologia no Brasil.

O advogado era o professor Paulo Tolle, ex-secretário de Educação de São Paulo, mais adiante, diretor regional do Senai (SP). Aliás, foi ele quem me contou este caso.

A escola cheia de gringos era o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o nosso familiar ITA, em São José dos Campos.

O professor americano era o dr. Richard Smith, chefe do Departamento de Aeronáutica do MIT, que se dispôs a vir ao Brasil criar uma escola de Engenharia Aeronáutica. Naquele momento, só um contrato leonino e salários régios poderiam atrair um americano eminente para um país bagunçado e sem tradições tecnológicas como o Brasil.

O jovem professor zangado ficará no anonimato.

Quando o Reino de Castela precisou de tecnologia e de um bom comandante para suas expedições, contratou o estrangeiro Cristóvão Colombo.

Quando o Japão precisou de técnicos estrangeiros no fim do século passado, não relutou em pagar-lhes mais do que a seus ministros.

Quando acabou a 2.ª Guerra, os Estados Unidos se abasteceram de quantos cientistas havia soltos na Europa. Somente nos últimos anos, os Prêmios Nobel concedidos para os Estados Unidos passaram a ir para americanos natos. A geração dos imigrantes predominou por muitas décadas na lista dos agraciados. Permanece hoje em virtualmente todos os países desenvolvidos a mais completa liberdade de contratação de estrangeiros nas universidades (eu mesmo por pouco não viro professor-titular em uma universidade na Califórnia).

Sem os asiáticos, os departamentos de engenharia das universidades americanas desabariam. O mesmo se daria com certas áreas científicas de universidades inglesas e francesas.

Mas o Brasil tenta pôr os estrangeiros no seu lugar, isto é, fora da universidade, desencorajados de contribuir para a nossa ciência e tecnologia.

Nota do autor: O presente ensaio foi escrito ao final da década de 80. Lamentavelmente, o seu tema se tornou outra vez candente, justificando a sua exumação.