Título: O PT colhe o que plantou
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2005, Editoriais, p. A3

O primeiro ato do deputado pernambucano Severino Cavalcanti como recém-eleito presidente da Câmara federal foi chamar a esposa para sentar-se à Mesa Diretora, enquanto ele fazia o discurso da vitória. Esse comportamento, nunca antes visto na casa, descortina, para quem não a conhecia, a mentalidade do "rei do baixo clero", que se autodenominou "candidato da maioria silenciosa" e será durante os próximos dois anos a maior autoridade legislativa do País e o terceiro hierarca da República, podendo substituir o presidente e o vice nas circunstâncias previstas pela Constituição.

Mas, dos ineditismos que farão entrar para a história a sucessão do deputado João Paulo Cunha, que aliás esteve à altura do cargo mais até do que se esperava, o revelador mau passo inaugural, apesar de sua acabrunhante carga simbólica, é obviamente o único a não carregar consigo conseqüências potencialmente desestabilizadoras para a vida política nacional. Com efeito, esta é a primeira vez que um candidato avulso - o PP, sétimo partido da carreira de Severino, não o indicou - chega à presidência da Câmara pelo voto dos seus pares (aos quais prometeu e tornou a prometer maiores salários e confortos).

É também a primeira vez que a sigla do governo, dispondo da maior bancada na Câmara (o PT ocupa 91 em 513 cadeiras), não faz o seu presidente. E é também a primeira vez que a legenda principal fica sem lugar no comando da instituição (o partido disputou apenas a presidência, para aumentar as chances do seu candidato Luiz Eduardo Greenhalgh). Por ora, pode-se apenas especular sobre os rumos que tomarão, depois da hecatombe imposta ao Planalto, a anunciada reforma ministerial, a capacidade do Executivo de aprovar os seus projetos no biênio que culminará no ano sucessório de 2006 e a coligação a ser formada para reeleger o presidente Lula.

Mas uma coisa ficou cristalinamente clara desde a primeira hora: a ciclópica incompetência do governo e do seu partido. Diante da permanência do companheiro Virgílio Guimarães na disputa, o Planalto pôs 10 ministros a trabalhar por Greenhalgh. Tamanha prepotência e insensibilidade aqueceram nos políticos, já ressentidos pelo descumprimento de promessas recebidas, a vontade de se vingar, valendo-se do voto secreto. O deputado Pedro Correa, presidente do PP, da base aliada, dizia ontem que, se o presidente tivesse nomeado de uma vez o correligionário Pedro Henry para um ministério, como anunciara, a candidatura Severino nem teria alçado vôo.

Já o PT, os olhos postos no perigo errado, resolveu induzir aqueles que sabia não serem eleitores de Greenhalgh a votar em Severino, certo de que essa dispersão o elegeria no primeiro turno - a sua única chance. Também aqui se deu o efeito bumerangue: o pepista obteve 124 votos e Virgílio, 117 (ante os insuficientes 207 de Greenhalgh). A partir daí abriram-se as comportas: no novo pleito, Severino se elegeu com emblemáticos 300 sufrágios - mais do que o dobro do total de deputados oposicionistas - e Greenhalgh amargou a humilhação de receber 12 votos a menos do que na primeira rodada.

No mínimo uns 100 parlamentares votaram em Severino não por serem adversários jurados do governo, mas para lhe dar uma lição absolutamente merecida, dada a sua catastrófica atuação no processo. Afinal, o governo colheu o que plantou. Nesses dois anos, o Planalto conduziu um escabroso embaralhamento das bancadas partidárias que as urnas mandaram ao Congresso. Desde que a ditadura criou a Arena e o MDB, não se viu no País o Executivo promover tamanho entra-e-sai de deputados pelas legendas, para formar, preservado o PT, uma base que uniria os ex-maoístas do PC do B aos ex-malufistas do PP.

Muito mais do que as manobras das caciquias regionais, como o recente troca-troca orquestrado pelo peemedebista acidental Anthony Garotinho, o governo Lula é o responsável número um pela anarquia parlamentar que engendrou a presidência severina na principal casa de leis do País. Pois, embora tenha deixado os brasileiros boquiabertos, a eleição do arquicorporativo e arquiconservador deputado, pernambucano de João Alfredo - onde nasceu e se iniciou na política o novo dirigente da Câmara -, foi coerente com as ignominiosas práticas que a precederam. E estas chegaram onde chegaram porque o PT no poder foi o primeiro a incentivá-las.

O Circo na Câmara e o Carnaval na Câmara, como este jornal intitulou os seus dois editoriais sobre a desmoralizante disputa, não poderiam ter desfecho mais apropriado.