Título: Lula em Caracas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2005, Editorial, p. A3

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva colocou-se desnecessariamente na defensiva ao afirmar, após a assinatura de uma vintena de atos e protocolos de intenção em Caracas, que "no Brasil e na Venezuela existe gente que acredita que o que estamos fazendo não tem futuro, que temos que aprofundar nossas relações com os países ricos". Antes, ele afirmara que o futuro não está no Norte - numa clara referência aos Estados Unidos, mas também à União Européia -, mas na integração sul-americana. Ninguém criticará o presidente por abrir oportunidades de comércio e de cooperação com a Venezuela. O país vizinho, afinal, é rico em minérios e energia que podem suprir as necessidades brasileiras e tem um mercado interessante para nossos exportadores.

O que preocupa nas declarações do presidente Lula - e em sua política externa - é que elas reproduzem o entendimento equivocado de que a presença internacional do Brasil deve ser marcada pela alternativa: ou damos ênfase ao estreitamento de relações com os países em desenvolvimento, ou o fazemos com os países industrializados. Esse esquema simplista deixa de levar em consideração o fato elementar de que o aumento da participação de um país nos fluxos comerciais e financeiros internacionais, bem como nas decisões políticas, se dá pelo aproveitamento de todas as oportunidades, e não pelo descarte de algumas delas, por viés ideológico.

O que deve prevalecer é o pragmatismo. Se interessa à Vale do Rio Doce, à Petrobrás e a tantas outras empresas ampliar seus negócios com a Venezuela, e se convém aos interesses do Brasil estender linhas de financiamento para incrementar o comércio bilateral, esse é o caminho a seguir. De fato, a cooperação no campo energético tem sido um objetivo estratégico visado pelos dois países há anos, independentemente dos vezos ideológicos de seus governantes. Há pelo menos 15 anos as duas empresas estatais petrolíferas buscam meios de operar em conjunto, num processo de sinergia. Durante as negociações para a formação do Mercosul, pensou-se seriamente na inclusão da Venezuela, que complementaria com seus recursos energéticos as economias do Brasil e da Argentina. Esses projetos, que na época não saíram do terreno das boas intenções, agora podem amadurecer, ainda que boa parte dos documentos assinados agora, em Caracas, também não seja mais que protocolos de intenção, como o da construção de uma refinaria no Brasil - mero "estudo de viabilidade", nas palavras do presidente da Petrobrás - e de uma fábrica de lubrificantes em Cuba. Expurgados os exageros retóricos de Lula e Hugo Chávez a respeito da "parceria estratégica" e das possibilidades de reformar a "geografia comercial", restaram alguma decisões que levarão a negócios concretos, a mais importante delas talvez sendo a de capitalizar o banco de fomento da Venezuela e a Corporação Andina de Fomento para financiar o comércio bilateral.

O reparo que se faz à missão do presidente Lula a Caracas é a boa vontade demonstrada pelo governo brasileiro ao pedido de fornecimento de aviões de combate. A venda de equipamento militar é, às vezes, um negócio - mas é sempre um gesto político. Deve o governo brasileiro, antes de permitir a exportação de 24 Super Tucanos e 12 AMX-T, analisar cuidadosamente as implicações dessa transferência para a estabilidade regional.

Não se deve esquecer que, no final do ano passado, o coronel Hugo Chávez adquiriu, em Moscou, 100 mil rifles de assalto Kalashnikov e 33 helicópteros pesados de transporte e de ataque, além de iniciar negociações para a compra de 50 aviões Mig-29. O governo americano já advertiu o Kremlin que esse pacote pode alterar o equilíbrio da região. O governo colombiano tem razões de sobra para se preocupar e não é demais supor que haja uma corrida armamentista na região.

A Venezuela não tem razões objetivas para se armar pesadamente. As preocupações de Chávez com uma eventual invasão norte-americana, por ele já manifestadas, não passariam de um delírio, não fosse o fato de alterarem a realidade. Recentemente, ele anunciou que enfrentaria a ameaça - que só ele percebe - ampliando as milícias bolivarianas. Ao comprar os rifles russos, deixou claro que uma parte desse arsenal armará as milícias, que já foram usadas contra a oposição que pedia a renúncia do presidente.

Por tudo isso, não convém que o Brasil forneça material bélico à Venezuela.