Título: Os habilidosos macacos-prego
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2005, Vida &, p. A16

Um estudo conduzido no País por cientistas do Brasil, dos EUA e da Itália pode revolucionar o que se sabe até aqui sobre o comportamento cultural de primatas. Em 1999, um grupo de cientistas escoceses conseguiu identificar entre os chimpanzés um modo de vida baseado em costumes aprendidos e partilhados, e não herdados geneticamente, o chamado comportamento cultural. Sabe-se que, em seu hábitat, chimpanzés usam galhos secos para obter cupins, que fazem parte de sua alimentação, e pedras, para abrir nozes. Também costumam ensinar seus filhotes a utilizarem esses instrumentos. A verdade, até agora, é que era muito mais simples assumir comportamentos semelhantes entre o homem e os great apes (como são conhecidos em inglês os primatas grandalhões como chimpanzés e orangotangos), que estão separados de nós na evolução por apenas 6 milhões de anos, do que aceitar similaridades com outros primatas, como os pequenos macacos-prego selvagens (Cebus libidinosus), cujo ancestral comum existiu há 40 milhões de anos.

Em apenas um ano de trabalho no Parque Nacional Serra da Capivara e na reserva biológica de Gilbués, grupos distintos de pregos selvagens foram vistos empregando ferramentas em um seu próprio hábitat pela primeira vez. Até então, o processo só havia sido comprovado numa situação de semiliberdade. Assim, livres na natureza, só chimpanzés e orangotangos na África mostraram tal grau de refinamento na hora de conseguir comida.

Entre os macacos-prego encontrados no Brasil, um quebrava um coco com uma pedra. Não muito longe, outro enfiava uma vareta numa colméia, para conferir se as abelhas estavam lá antes de se deliciar com o mel. Um terceiro manuseava uma pedra, que remete a um ancinho pré-histórico, para cavucar a terra em busca de insetos.

O comportamento é muito parecido ao já observado por parte da equipe de cientistas no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo. Foi ali que um time liderado pelo etologista (especialista em comportamento animal) Eduardo Ottoni, da Universidade de São Paulo (USP), viu pela primeira vez o macaco-prego colocar um coco sobre uma pedra, chamada de "bigorna", pegar outra, o "martelo", e desferir um golpe certeiro para abrir o fruto.

No Tietê, vivem macacos com origens e histórias diferentes: a maioria foi recolhida em operações de fiscalização do Ibama e jogada lá, enquanto outros apareceram em movimentos migratórios não muito claros, formando uma comunidade heterogênea que aprendeu forçosamente a viver em conjunto em um trecho relativamente pequeno de mata atlântica. A prática de quebrar cocos com pedras passada para os mais novos, que aprendem olhando os mais velhos, poderia ser uma anomalia, moldada pelas condições sociais adversas e pela facilidade para conseguir as ferramentas, ponderam os cientistas.

Por isso, eles mergulharam no interior do Nordeste, onde a situação é bem diferente: os grupos de macacos seguem gerações juntos, não têm contato com humanos e mesmo entre eles as reuniões são esparsas. "Um aspecto importante que tentamos verificar no Piauí é a capacidade de transmissão não genética, mas cultural", explica o etologista. Capacidade essa que caracteriza homens e chimpanzés - mas só depois de evidências claras serem apresentadas na década de 1970 pela primatologista Jane Godall, e não antes de fomentar muitas discussões entre biólogos e antropólogos. "Se mostrarmos que o processo de transmissão também faz parte da vida de outras espécies, precisaremos repensar alguns conceitos sobre o que é cultura, que deixa de ser quase exclusividade humana."

Para Ottoni, a virada é uma questão de tempo. Tanto que ele parece menos confiante ao usar a expressão "cultura material", termo cunhado para diferenciar o comportamento animal do assumido pelo Homo sapiens ("Como se o homem não fosse também um animal", comenta), do que simplesmente "cultura".

Como, então, explicar a similaridade de comportamento entre humanos e macacos-prego, quando se tem uma linha de tempo entre ancestrais comuns separada por quase 40 milhões de anos? A explicação pode estar no campo da neurociência, especificamente no estudo da evolução cognitiva.

Institutos de pesquisa espalhados pelo mundo têm buscado similaridades entre os primatas para explicar como o pensamento é construído no cérebro das mais diferentes espécies desses animais. A conclusão ainda está distante, mas há pistas cada vez mais fortes de que muita massa encefálica não significa raciocínio complexo. "Antes do prego, muita gente achava que os macacos do Novo Mundo não seriam capazes de mostrar um comportamento do gênero, que seria exclusividade dos grandes", diz Ottoni.

Enquanto a discussão acadêmica esquenta, os cientistas em campo continuam a recolher evidências. Em Gilbués, os macacos-prego não apenas usam ferramentas para conseguir comida como guardam as melhores pedras para quebrar o coco. Isso porque a rocha na região é arenosa, esfarelando na primeira bordoada. Os melhores "martelos" costumam aparecer carregados por enxurradas. "Quando encontram uma pedra resistente, os macacos-prego a guardam", conta o pesquisador.

O trabalho em Gilbués é financiado por instituições internacionais, como a National Geographic Society. Na Serra da Capivara, a verba é da Fapesp. Em ambos os casos, mais alguns anos de observação estão garantidos.

Por enquanto, o trabalho rendeu uma publicação em dezembro no periódico especializado American Journal of Primatology e apresentações no Congresso Brasileiro de Primatologia, que termina amanhã em Porto Alegre. Para os cientistas, é apenas o começo.