Título: O linguajar de Lula
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Dora Kramer, com sua acuidade habitual, analisa detidamente as implicações políticas daquela maneira de falar de Lula, que no começo parecia até pitoresca, mas hoje, de tão repisada, está começando a cansar.

"Há de haver uma explicação para o empenho do governo em geral e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em particular na consolidação do pensamento banal, da palavra tosca e do ato irrelevante como valores representativos do caráter nacional" (Em nome da lei do pior esforço, Estado, 26/1).

O falar errado de Lula não constitui um dado isolado e sem conseqüências. Sua "palavra tosca" arrasta consigo o "pensamento banal", que, por sua vez, responde pelo "ato irrelevante". As aberrações lingüísticas condicionam a banalidade do pensamento e a irrelevância dos atos de um governo sem forma nem figura de governo. Se tudo se limitasse aos erros gramaticais de Lula, seria fácil absolvê-lo. Mas o que denunciam aqueles erros não se resume à quebra das regras acadêmicas da linguagem, e sim algo muito mais grave - o simplismo das idéias, inadequado à complexidade dos problemas de governo, e a ineficácia da conduta, limitada a medidas irrelevantes, isto é, paliativas.

Dirão os incautos que Lula, homem do povo, tem o direito, e até a obrigação, de falar como o povo. Poderiam invocar Manuel Bandeira, naquele poema clássico do modernismo, Evocação do Recife:

"A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil..."

Aqui é que mora a dúvida. Lula fala, mesmo, a língua do povo? Basta falar errado para falar a língua do povo? Sabemos que a língua popular, na sua informalidade, tem sabores insubstituíveis e é vivamente expressiva, quer na versão da fala plebéia da população de baixa renda, quer na versão caipira, ou na versão sertaneja, da qual Euclides da Cunha fornece amostra eloqüente em Os Sertões:

"Patrão e amigo.

Participo-lhe que a sua boiada está no despotismo. Somente quatro bois deram o couro às varas. O resto trovejou no mundo."

Magnífico exemplo da linguagem sóbria e enérgica do sertanejo.

Fica evidente que Lula, por mais populista que quisesse ser, nunca poderia adotar, na íntegra, nem a língua caipira, nem a do sertanejo, nem a de Adoniran Barbosa, sem cair no ridículo mais atroz. Lula não é "doutor", mas também não é caipira, nem sertanejo, e há muito tempo deixou de ser o pau-de-arara emigrado do Nordeste. Seu perfil mais autêntico é o de membro da elite metalúrgica do ABC, camada diferenciada de trabalhadores, da qual saem os grandes líderes sindicais, que se recusam a falar errado (Paulinho, Marinho, Feijó e outros).

Então, o que faz Lula? Ele não se apropria da língua popular em nenhum de seus níveis. A fim de parecer homem do povo, o avesso da malsinada elite de grã-finos e doutores da burguesia, ele se limita a maltratar a língua, engolindo os esses, violentando a sintaxe, forçando erros de concordância, como se isso bastasse para "falar gostoso o português do Brasil". Em suma, Lula forja um arremedo de língua popular, distante tanto dos padrões da linguagem formal, como dos usos legítimos da fala popular (caipira, sertaneja ou periférica). O discurso de Lula degenera num Frankenstein assustador: "A gente tem que ser gentis", soltou outro dia.

"Considerando que o presidente sabe falar normalmente (sem preciosismos, mas no limite do linguajar aceitável) quando quer, qual a necessidade de discursar aos carteiros agredindo o português da forma como fez ontem, sem deixar quase nenhuma frase incólume?" (Dora Kramer).

A necessidade, é claro, de fazer média com o povão e com seu público interno, a intelligentsia pós-revolucionária, que se orgulha de ter guindado à Presidência um ex-metalúrgico (sem letras, mas "com muita intuição e carisma"). Jamais Lula poderia falar como FHC, Sarney, Collor ou até Itamar, pois é imperioso lembrar que ele é o povo no poder. A mensagem subliminal dessa intelligentsia pós-revolucionária diz assim: renunciamos à tomada do poder pelas armas, mas não abrimos mão de agredir as instituições burguesas vigentes e, quando nosso grande líder messiânico mutila o idioma pátrio, são as instituições culturais, jurídicas, civis e políticas que ele está ferindo no cerne.

O povo também estropia a língua, mas com inocência. Na fala estropiada de Lula há de tudo, menos (menas) inocência.