Título: Chega de manipulação
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2005, Editorial, p. A3

A execução da freira Dorothy Stang em Anapu (PA) é execrável sob qualquer ponto de vista, mas, sobretudo, pela excepcionalidade da vida que os assassinos extinguiram. Mas também é reprovável a sórdida manipulação política que se está tentando fazer de seu cadáver. Essa exploração foi iniciada por quem mais deveria respeitar a religiosa: a hierarquia da Igreja Católica. A CNBB divulgou nota oficial, assinada pelo presidente, cardeal Geraldo Majella Agnelo, pelo vice, d. Antônio Celso de Queirós, e pelo secretário-geral, d. Odílio Pedro Scherer, designando-a como "mais uma vítima da luta dos pobres pela terra". Segundo os prelados, esse assassínio traz à tona a necessidade urgente de soluções para "dívidas sociais antigas e graves", entre as quais "a verdadeira reforma agrária".

Essa grosseira manipulação ideológica distorce os fatos. A freira nascida nos EUA não foi vítima da guerra entre latifundiários e trabalhadores sem-terra - aos quais ela efetivamente se dedicava - mas tombou na "terra de ninguém" de outro conflito: a cruenta guerra pela posse de áreas da floresta entre madeireiros e grileiros. Na luta do MST contra os proprietários de terra, o primeiro afronta a lei para subverter a ordem democrática, sob o pretexto politicamente correto de distribuir a terra, na posse destes, para a produção de alimentos. Ocorre aí o clássico confronto entre carentes e abastados, que tentam na Justiça evitar que suas propriedades sejam loteadas e distribuídas àqueles que a nota da CNBB chama de "pobres, pequenos e desarmados".

Este não é o caso de Anapu, onde não há pobres enfrentando ricos nem se desafiam direitos de propriedade garantidos pela Constituição. A demanda, que diz respeito ao estatuto da floresta amazônica, põe frente a frente madeireiros, que "fazem a Amazônia", ganhando dinheiro rápida e fartamente com a extração de madeira nobre, quase sempre ao arrepio da lei, e grileiros, que ocupam glebas devolutas sobre as quais raramente têm direitos legais. Como nenhum dos lados teria por que apelar à Justiça, a exemplo do que fazem os donos de terras ocupadas pelo MST, as dissensões são normalmente resolvidas à bala. No meio desse tiroteio, a irmã Dorothy Stang - que lutava pelo assentamento de sem-terra em lotes para extração legal de madeira - só sobreviveria por milagre. Numa das raras afirmações sensatas de sua nota, a CNBB registrou que ela, "missionária corajosa e dedicada", conhecia o risco de seu trabalho. Utilizar seu corpo crivado de balas como bandeira para estimular os que "acreditam na força da verdade e do amor", contudo, é tão inadequado quanto a acusação de ser agente do imperialismo e da internacionalização da Amazônia, que a mesma hierarquia católica fazia, antes de ela se tornar tragicamente famosa, a todos os religiosos norte-americanos em atividade na região.

Em equívoco semelhante, que beira as raias da má-fé, incorre o governo, ao tentar tirar proveito político do crime, corretamente definido como "vil e brutal" pelos bispos, associando a ação criminosa à presença da Polícia Federal na Amazônia, como o fez o chefe da Casa Civil, José Dirceu. "O que aconteceu foi a reação dos grileiros à presença do Estado, que começou a regularização fundiária e ambiental na região", disse o ministro.

Se é, de fato, injusto cobrar de uma administração iniciada há apenas dois anos a evidente participação da ausência do Estado na formação do caldo de cultura da violência na floresta amazônica, não se pode, da mesma forma, aceitar uma explicação tão simplista e, o que é pior, tão oportunista. Se a autoridade não consegue controlar a situação nos morros do Rio de Janeiro e nas favelas de São Paulo, como imaginar que possa impor a lei e a ordem na remota e imensa Hiléia? O governo Lula não pode ser inculpado pela preocupante definição da região amazônica como sendo uma área "sem lei e sem alma", semelhante ao Oeste americano no século 19. Mas também não faz o menor sentido o ministro José Dirceu tentar fazer da blusa ensangüentada da missionária - a exemplo do que fizera, na juventude, com a camisa de um colega estudante morto pela polícia à época da ditadura militar - uma espécie de estandarte de propaganda política dos projetos de seu governo. A este cabe, com mais eficiência e menos estardalhaço, identificar autores e mandantes do crime e entregá-los à Justiça. "Já é hora de darmos um basta a estas ações", disse Dirceu, corretamente. E já chega dessa manipulação!