Título: 'Perdemos o espírito missionário'
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/02/2005, Vida &, p. A9

O cardeal-arcebispo d. Cláudio Hummes, de 70 anos, é a personalidade de maior importância na hierarquia católica brasileira. Não apenas pelo fato de ser o chefe da Arquidiocese de São Paulo, mas porque é um dos braços direitos do papa João Paulo II. D. Cláudio foi nomeado pelo papa para dez cargos do Vaticano. O mais recente deles, ocorreu há poucos meses, quando foi chamado para integrar a administração econômica do Vaticano. Antes dele, apenas um brasileiro havia ocupado o cargo, o cardeal d. Lucas Moreira Neves, morto em 2002. Que d. Cláudio não tenha lido o parágrafo anterior. Fiel aos votos de humildade da Ordem Franciscana, esse cardeal, que domina seis idiomas, é modestíssimo. Uma das provas é o estilo de sua casa, lugar onde foi realizada esta entrevista na quinta-feira passada. A cozinha, por exemplo, tem apenas o essencial: mesa, cadeiras, pia. Sobre o fogão, ficam duas panelinhas de alumínio. Na entrada da sala, imagens de São Francisco. Em lugar de destaque, uma estátua de São Pedro, ladeados por imagens de João Paulo II.

Procurado para comentar a entrevista publicada ontem pelo Estado com o arcebispo emérito de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, em que ele diz que o papa deveria renunciar, d. Claudio preferiu não se pronunciar a respeito.

Os católicos comemoram este ano quatro décadas de conclusão do Concílio Vaticano II. O sr. não acha que o papa João Paulo II deixou um pouco de lado o Concílio ao longo de seu papado?

Quando analisamos os discursos dele, sempre encontramos temas do Concílio. Sobretudo em relação às grandes questões, como a relação da Igreja e o mundo, a dignidade humana e o progresso.

E em relação à pastoral, à aproximação da Igreja com o fiel?

Não diria que houve afastamento. Talvez o papa não tenha explicitado essa conexão com o Concílio em seus discursos.

Mas o sr. não acha que os católicos têm se afastado da Igreja?

A Igreja tem hoje um grande desafio na América Latina, que é o decréscimo do número de católicos. Isso é drástico.

Isso tem a ver com o avanço dos evangélicos?

Não se trata da Igreja culpar esse ou aquele ou ser hostil às outras igrejas ou seitas. A Igreja Católica tem de se perguntar : "O que não estamos conseguindo fazer para que os católicos continuem católicos e fervorosos?"

Qual é o problema, então?

Acredito que seja a evangelização. Devemos fazer com que as pessoas tenham um encontro pessoal com Jesus Cristo, uma experiência religiosa maior. E nós não oferecemos a elas essa oportunidade. Então, elas buscam onde alguém oferece. As seitas, sobretudo, são muito mais emotivas. Elas pregam de fato Jesus de uma forma mais simples. Isso acaba satisfazendo a busca espiritual das pessoas. Deveríamos ser capazes de fazer isso também. Mas perdemos o espírito missionário. As seitas, por exemplo, vão em busca dos futuros adeptos no corpo a corpo. Nós, os esperamos em nossas paróquias. Temos de ir aonde eles estão. Os católicos devem sentir nossa presença. A 5.ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, que deverá ser em 2007, terá como grande tema a questão missionária.

Reforçar a reforma litúrgica faz parte da nova evangelização?

Sim, talvez alguma coisa. É complicado dizer quais seriam as mudanças concretas. Os rituais hoje parecem mais uma reunião de amigos. Devemos recuperar a vivência de Deus na liturgia, da forma que o povo sinta isso. Temos de fazer com que os rituais exprimam mais a realidade, a cultura do povo.

Em 2002, João Paulo II o convidou para realizar palestras no seu retiro espiritual. Isso mostra que vocês têm muita proximidade.

Dom Lucas (Moreira Neves) também já fez isso.

Como é o papa na intimidade?

Ele tem uma liderança muito grande, é extremamente fraterno. É um homem que se envolve com tudo. Uma vez, no Castelgandolfo, ele participou de uma noitada com jovens fiéis tocando violão.

Há boatos de que o papa hoje não esteja de fato à frente do Vaticano. Os rumores começaram depois do mal de Parkinson. Isso é verdade?

É claro que os discursinhos e as pequenas formalidades devem ser elaborados por outras pessoas. Mas posso afirmar que ele está plenamente lúcido e reage a todas situações, mesmo que não consiga falar articuladamente e se expressar tão bem por conta da doença. Está plenamente consciente de tudo que o cerca. Tenho contato pessoal com ele, vejo isso sempre.

Ninguém manda no papa, então?

Ninguém.

O senhor vai com que freqüência ao Vaticano?

Cerca de cinco vezes por ano. Quando era jovem, isso era um grande prazer. Hoje, é muito cansativo. Você chega lá, vai direto para a sala de trabalho, volta ao aeroporto e retorna volta para casa.

Na década de 70, o sr. abrigou metalúrgicos em sua casa e sua sacristia, quando era bispo em Santo André. O senhor chegou a conversar com o papa sobre questões trabalhistas?

Sim, falamos muitas vezes de questões operárias. Em 1980, quando o papa esteve no Brasil, fui chamado para ficar no palanque com ele, no Estádio do Morumbi, justamente pelo meu envolvimento no assunto. Na verdade, o papa foi uma inspiração para mim. Ele apoiou a luta do Solidariedade (sindicato fundado na década de 1970 por estaleiros, na Polônia, em oposição ao regime comunista do país, na época).

Enquanto o papa esteve hospitalizado, em Roma, a discussão em torno da aposentadoria compulsória, não só de João Paulo II, mas dos próximos papas, esquentou. O que o sr. acha disso?

Não gostaria de falar sobre isso. Principalmente neste momento. Quero apenas dizer que é um privilégio ter este papa.

O sr. não é o único cardeal brasileiro. Por que, então, há rumores apenas com seu nome no Brasil para suceder o papa atual?

Não tenho nada a dizer sobre isso.