Título: MP 232 - chegou a hora do basta!
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Na Inglaterra, em 1215, ante a fúria tributária e outros desmando do rei João Sem Terra, os barões se insurgiram e o obrigaram a assinar a Magna Carta. Esta, entre outras coisas, vedava ao monarca criar tributos sem o consentimento do que, mais tarde, viria a ser o Parlamento. Nascia, assim, o primeiro arremedo da democracia inglesa, com a limitação dos poderes reais. A Magna Carta, juntamente com a Bill of Rights (1689), são os dois documentos que até hoje lastreiam o que se poderia chamar de "Constituição" britânica.

Alguns séculos depois, em 1765, o rei Jorge III, após o fim da Guerra dos Sete anos, decidiu repassar parte dos custos da refrega para as colônias inglesas na América. Os colonos foram onerados com a Lei do Selo, a Lei do Açúcar e, pouco depois, com a Lei do Chá. Foi o estopim para a revolta que, em 1776, resultou na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. O rei Jorge, em sua avidez fiscal, acabou por matar a "galinha dos ovos de ouro" da Inglaterra.

Poucos anos depois, o rei Luiz XVI, da França, com as finanças arruinadas, decidiu criar impostos sobre a nobreza e o clero. Estes se rebelaram e exigiram do soberano a convocação dos Estados Gerais - uma espécie de Parlamento francês, que não era convocado desde 1614. O que se seguiu está registrado nos livros de História. Em 1789, o "Terceiro Estado" rebelou-se e criou a Assembléia Nacional, a qual, por sua vez, deflagrou a Revolução Francesa. Luiz XVI acabou sem os seus impostos, sem o trono e sem a própria cabeça.

No mesmo ano, aqui, no Brasil, uma cobrança extorsiva de impostos resultou na Inconfidência Mineira, a primeira manifestação séria de independência dos brasileiros.

Bastam esses exemplos - entre inúmeros outros através da História - para demonstrar o poder explosivo que a sanha arrecadatória do Estado desencadeia. Ninguém gosta de impostos. Nunca existiu uma "sociedade dos amigos do Fisco". O próprio termo "imposto" já indica, por si, que os tributos não são espontâneos, mas sim impingidos aos cidadãos.

Obviamente, é impossível constituir um Estado sem o suporte de receitas próprias. E estas, necessariamente, têm de ser arrecadadas do povo. Mas existe um limite, que quando é ultrapassado põe o próprio Estado em risco. Qual seria esse limite?

Algum pensador, cujo nome não lembro, criou, com muita propriedade, a "lei do morcego inteligente". Segundo ela, os morcegos prudentes sabem a exata quantidade de sangue que podem sugar de um boi a cada dia. Esse volume seria o máximo suficiente para suprir as suas necessidades de alimentação e o mínimo possível para que o boi possa recompô-la até a sugada seguinte. Morcegos gulosos, segundo a lei, sugam sangue demais, matam o boi de fraqueza e acabam morrendo depois, de inanição.

Em termos mais técnicos, existe na economia o que se convencionou chamar de Curva de Lafer. Segundo o seu autor, o economista Artur Lafer, ela aparece, num gráfico, com o formato de um meio círculo, emborcado para baixo. Conforme as alíquotas dos impostos sobem, a arrecadação total vai subindo com elas. Isso acontece até que a curva chega à sua máxima altura. A partir daí ela começa a descer. Ou seja, depois do ponto máximo, quanto mais se aumentam os impostos, menor se revela a arrecadação. Isso acontece porque, diante de tributos escorchantes, as empresas e as pessoas optam simplesmente por sonegá-los, não por falhas morais, mas tão-somente por uma questão de sobrevivência.

Voltando ao aqui e agora, temos a famigerada Medida Provisória 232, que propõe a elevação de tributos e despertou raivosas reações de grande parte da sociedade.

Ao que parece, já faz muito tempo que o Estado brasileiro ultrapassou o ponto máximo da Curva de Lafer. Os indícios são claros. A economia informal - que não paga impostos - é imensa e se calcula que nada menos que 60% dos trabalhadores brasileiros estejam empregados nela. Na vida real, o boi não morre. Ele trata, isso sim, de se esconder do morcego.

O problema é que existem pessoas briosas, honestas, que se recusam a pagar mais impostos e, ao mesmo tempo, repudiam a idéia de se esconder nos porões da economia informal. São, acima de tudo, cidadãos. E, como cidadãos, eles têm plena consciência de todos os direitos e deveres que essa condição acarreta. Não querem sentir-se como exilados vivendo na própria pátria. E são eles, justamente, o sal da terra sobre a qual se ergue a sociedade civil.

Para o Estado, o governo, seria, sem dúvida, mais conveniente que eles, ao em vez de se rebelar, optassem por cair na clandestinidade. A estabilidade política estaria, assim, garantida. O problema é que os cidadãos honrados querem andar de cabeça erguida e não se sujeitam a viver à margem da lei. Eles não se dispõem a praticar o abjeto jogo de gato e rato com os fiscais. Não subornam e não são subornáveis. São e querem ser altivos, honrados e independentes.

Pessoas assim não sonegam impostos. Esse seria o caminho mais fácil. Elas preferem levantar-se e bater de frente com o Estado. É justamente o que agora está ocorrendo.

João Sem Terra, Jorge III, Luiz XVI, todos eles foram soberanos incautos, cujo erro fatal foi subestimar os brios e a disposição para a luta da sociedade civil. O primeiro perdeu o poder, o segundo enlouqueceu e o terceiro foi decapitado. Lula pode escolher. A História está aí para lhe mostrar as opções.