Título: Rosca espanada
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2005, Editorial, p. A3

Até os membros do Comitê de Política Monetária (Copom) reconhecem que é cada vez mais intensa a reação às decisões que eles vêm tomando pelo menos desde setembro do ano passado de maneira sistemática. Por que, pergunta-se com insistência crescente, mesmo tendo a taxa básica de juro Selic, que já é alta demais, sido elevada ininterruptamente por seis meses - fato inédito na história -, a inflação resiste? Até quanto vale a pena apertar uma política monetária já severa, que tem efeitos colaterais danosos sobre a dívida pública e sobre o investimento, se não se alcança o efeito desejado, que é a redução da pressão sobre os preços?

Mesmo que se leve em conta o fato de as decisões de política monetária necessitarem de um prazo para produzir os efeitos desejados por seus responsáveis, é cada vez mais claro que ela está sendo ineficaz. E isso pode ser constatado por meio de simples comparação entre as seguidas altas da taxa Selic desde setembro do ano passado e a curva da inflação nesse período. Enquanto o gráfico de juros mostra uma alta contínua (de outubro para cá, ao ritmo de 0,5 ponto porcentual por mês), o da inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, mostra uma inabalável resistência à queda. Nos 12 meses encerrados em janeiro, registra alta acumulada de 7,41%, bem acima da meta fixada para este ano, de 5,1%.

É correta a preocupação do Banco Central (BC) com a persistência da inflação. Nada seria mais nocivo para as expectativas dos agentes econômicos do que uma atuação frouxa do BC. Mas sua ação é ineficiente.

E, paradoxalmente, é com essa ineficiência que o presidente do BC pretende justificá-la: o crescimento da economia não foi afetado, diz ele. Portanto a política de alta de juros deve continuar. Mas não é reduzir o ritmo de crescimento o objetivo de qualquer política de alta de juros? Não é essa redução que, reduzindo a pressão do consumo, evita a alta de preços? Mas, no caso brasileiro, não é esse tipo de alta de preços, que é mínimo, que produz inflação.

Um dos principais focos de resistência da inflação é a indexação dos preços administrados, os quais contribuem com 29% na composição do IPCA. A alta da Selic não influi nesses preços, pois boa parte deles é reajustada de acordo com cláusulas contratuais, especialmente nas áreas de energia e comunicações. Tais reajustes baseiam-se no Índice Geral de Preços, cujo principal componente são os preços por atacado, fortemente influenciados pelas cotações internacionais dos produtos de exportação, como a soja, e pela taxa de câmbio. Por causa desses fatores, em determinados períodos, os preços administrados sobem mais do que os demais e puxam a inflação para cima; em outros, sobem menos, e desempenham papel inverso. Em qualquer dos casos, são imunes à política monetária.

Outra fonte de inflação é a expansão dos gastos públicos. As despesas do governo crescem mais depressa do que a economia. Em 2003, os gastos totais do Tesouro representaram 16,6% do PIB; no ano passado, ficaram em torno de 17%. O governo alega que, em 2004, conseguiu ampliar os investimentos. É verdade. Eles passaram de 0,4% para 0,5% do PIB. O que é uma insignificância que não permite manter em condições mínimas de utilização a infra-estrutura existente, como mostram as precárias condições da malha rodoviária federal.

Mas os gastos correntes cresceram bem mais. E, entre esses gastos, destacam-se os pagamentos aos funcionários públicos e aos segurados da Previdência Social. Em 2004, os gastos com pessoal e encargos cresceram numa velocidade comparável à do aumento da produção. Mas, neste ano, devem crescer mais depressa, por conta das correções salariais já decididas e do aumento do número de servidores. E, com o aumento do salário mínimo para R$ 300, a fatia dos benefícios previdenciários crescerá de 7,1% para 7,2% do PIB.

Se cortasse os gastos de custeio, o governo aliviaria a pressão sobre a demanda temida pelo BC, pois demanda crescente pode resultar em mais inflação, e abriria espaço para a redução dos juros. Com a expansão de suas despesas, o governo precisa arrancar mais impostos dos contribuintes e obriga o BC a manter os juros num nível muito alto. A política fiscal contradiz a política monetária.

A sociedade paga duplamente por essa contradição. De um lado, é submetida a uma carga fiscal já insuportável, mas que, mesmo assim, o governo quer aumentar. De outro, paga um custo alto demais pelo crédito, por causa das decisões do Copom. Eficaz na imposição de ônus para o governo devedor e o setor produtivo, a política monetária não passa de uma rosca espanada no combate à inflação.