Título: Os três mosqueteiros
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2005, Editorial, p. A3

Os jornais de ontem traçam um retrato acabrunhante da elite política brasileira que o presidente Lula não se cansa de criticar. O que há de acabrunhante está nas manifestações daqueles que, no plano institucional, se encontram precisamente no topo dessa elite - o próprio Lula, o vice (e ministro da Defesa) José Alencar e o novo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti. Juntem-se as declarações do trio e não se terá como fugir da constatação do quanto o País retrocedeu em matéria dos horizontes mentais dos ocupantes de tais cargos. Em outros momentos da história nacional, geralmente havia, entre os seus titulares, pelo menos um que destoasse das limitações dos demais. Definitivamente, não é o caso, agora.

O presidente da República - já não há quem não se tenha dado conta disso, se dispuser das informações necessárias e se julgá-las sem parti pris - age como se governar fosse fazer discurso. E o pior é que nem o governante tem apego pelo exame circunstanciado de questões técnicas, maçantes pela sua própria complexidade, porém de grande importância, nem o orador tem o indispensável conhecimento de causa para ir além do que a pesquisadora Luciana Fernandes Veigas chamou, com absoluta propriedade, a "quase-lógica" dos seus argumentos. O seu pronunciamento na conferência dos chefes de Estado do Caribe, quarta-feira, em Paramaribo, foi a enésima demonstração disso.

Ali, ao condenar "a cabeça da elite política brasileira" por dar mais atenção ao que se passa nos países desenvolvidos, em detrimento de outros, se autocriticou por não ter visitado a África e o Caribe nos seus tempos de sindicalista, preferindo ir aos EUA e Canadá - como se achasse hoje que a América do Norte nada teria a lhe ensinar sobre sindicalismo e relações trabalhistas nas sociedades industrializadas. E foi fundo na quase-lógica com o seguinte non sequitur: "O poder político dos ricos só poderá ser contrabalançado com o poder políticos dos pobres. Somos pequenos, mas temos um povo que sabe o que quer." Como observou, em artigo no Estado de ontem, o jornalista Rolf Kuntz, "é evidente que ele está inteiramente perdido nessa discussão".

Enquanto isso, em Brasília, o vice-presidente José Alencar, numa audiência a parlamentares petistas, estabeleceu uma assombrosa relação de causa e efeito entre o patamar da taxa básica de juros fixado pelo Copom e a incapacidade do governo de coibir a violência no Pará, como se em tempos de juros mais baixos o poder federal tivesse estado mais presente e fosse mais atuante na área. Diante disso, não espanta que um dos interlocutores do vice lhe contasse em seguida que o coordenador do MST, João Pedro Stédile, disse certa vez que se sentia um conservador sempre que saía de uma reunião com ele, Alencar. No mesmo clima de leveza, alguém comentou que as falas do vice ainda levariam o deputado Babá a trocar o PSOL pelo PL.

Mas a estrela do dia, pelas atenções recebidas da mídia e a densidade de suas idéias, foi sem dúvida o deputado Severino. Numa entrevista de meia hora em que respondeu a 15 perguntas - e, segundo a colunista Dora Kramer, "não foi capaz de produzir um raciocínio lógico, de juntar duas idéias razoáveis, de defender uma proposta com começo, meio e fim" -, o titular da Câmara se declarou favorável à prorrogação do mandato do presidente Lula por dois anos sem reeleição, e também os dos detentores dos cargos eletivos federais (como é o seu caso) e estaduais, para instituir a coincidência geral dos pleitos no País. Bem que ele avisou que não iria negar "total cobertura ao governo Lula".

Severino reiterou que aumentará o salário dos deputados de R$ 12.840 para R$ 21.500 mensais e que, se depender dele, o recesso parlamentar continuará a durar 90 dias. Explicou: "O parlamentar tem de estar em contato com suas bases" (com dinheiro público, naturalmente). A ninguém, tampouco, terá surpreendido a sua "descrença" nas "relações de homem com homem e de mulher com mulher" ("Não posso acreditar..."). Por fim, em outra entrevista, a Eliane Cantanhede, da Folha de S. Paulo, cuja leitura deve ter agradado ao vice Alencar, Severino disse que o Banco Central "precisa de um cabresto".

A forma, como se sabe, não é antônimo de conteúdo. Quando se trata de palavras pode ser a expressão mais autêntica de um modo de pensar e ser. Eis o que une, infelizmente, os três mosqueteiros da República brasileira.