Título: Tomando liberdades
Autor: Luiz Weis
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

No dia seguinte à posse de George W. Bush, enquanto os analistas discutiam o que ele quis dizer com aquele que a mídia chapa-branca já exaltava como "o discurso da liberdade", a Casa Branca chamou repórteres dos principais jornais americanos para um briefing - uma sessão de contorcionismo em que a fala do presidente foi traduzida em termos de "sim, mas" e "não, mas". Sim, ao mencionar 49 vezes o termo liberdade e suas variações, em 2 mil palavras e 21 minutos, como o noticiário não se cansou de anotar, o discurso exprimiu fortes convicções sobre o compromisso da América de fazer chegar "a chama indomável da liberdade aos cantos mais escuros do mundo". E de fazer saber aos oprimidos que os Estados Unidos "não desculparão os seus opressores". Mas, ressalvaram as fontes oficiais, esse é um alvo de muito longo prazo. Então nada muda, por exemplo, na relação com os aliados que deixam de dar aos seus povos o "tratamento decente" de que falou Bush? Muda, sim: ele vai "cutucar" esses governos. Mas não, os direitos humanos não voltarão ao centro da diplomacia americana, onde os pôs o presidente Carter, nos anos 1970. "Aprendemos muito desde então", disse uma das tais fontes. O fato de Bush ter declamado que "os interesses vitais da América e as nossas crenças mais profundas agora são unas" não deve, pois, tirar o sono dos governantes autocráticos ou autoritários da Rússia, da China, do Egito, do Paquistão, da Arábia Saudita, dos Emirados, do Usbequistão... Deles, por várias razões, dependem os "interesses vitais da América" - estes, sim, dizem os céticos, as suas "crenças mais profundas". Enquanto os regimes pseudodemocráticos ou abertamente liberticidas contribuírem para os objetivos políticos, econômicos e estratégicos americanos, jamais serão "postos avançados da tirania", como a secretária de Estado Condoleezza Rice se referiu dias atrás a Belarus, Coréia do Norte, Cuba, Mianmar, Zimbábue - e ao Irã, já na mira do Pentágono. As vítimas dos despotismos úteis aos Estados Unidos que se guardem de levar a sério a promessa de Bush: "Quando vocês se erguerem pela liberdade, nos ergueremos com vocês." Em 1991, depois de correr os iraquianos do Kuwait, o governo de Bush-pai incentivou xiitas e curdos a se erguerem contra o opressor (e ex-aliado de Washington) Saddam Hussein. Ele os massacrou. A Casa Branca fingiu que não viu. No começo, Bush-filho talvez fosse menos cínico do que os demais membros da junta que governaria a América: o vice Dick Cheney, o conselheiro Karl Rowe e o secretário Donald Rumsfeld. Na campanha de 2000, ele deixou clara a sua antipatia pela idéia de que os Estados Unidos deveriam "construir nações", para conter conflitos e ampliar o leque das democracias. Bush ainda não havia aprendido com os ideólogos neoconservadores prontos para dar o bote em Washington e ávidos por levar os seus projetos globais à prática que "os interesses vitais da América" seriam mais bem servidos por uma política externa agressiva e unilateral, legitimada por suas "crenças mais profundas". No século 15, Portugal investiu-se da missão de propagar "a fé e o Império". Na sua cruzada, os neoconservadores invocam apenas a fé - no caso, a liberdade - para expandir a segurança, o poderio e a prosperidade da "República imperial" americana. Eles ajudaram entusiasticamente a fabricar a falsidade de que Saddam, sócio do terror islâmico, ameaçava com as suas armas mortíferas, se não a América, os seus aliados no Oriente Médio. Proclamaram também - como faria Bush pouco antes da invasão - que a meta das metas da "mudança de regime" em Bagdá era "levar a democracia ao Oriente Médio". A americanização política do mundo árabe-muçulmano, faltou dizer com todas as letras, garantiria de vez a existência de Israel e permitiria perpetuar os padrões babilônicos de consumo de energia dos Estados Unidos. Faz sentido, assim, a interpretação de que o "discurso da liberdade" não foi nem o que as fontes da Casa Branca se enrolaram para explicar, nem o que a velha guarda conservadora receou que pudesse ser - "uma tremenda e equivocada expansão dos alvos da política exterior americana". Equivocada por falta de gás, por seus efeitos adversos e por incomodar os tiranos amigos - a utópica demanda da esquerda americana. O fraseado estelar do discurso teceu uma fraude. Já que os arsenais de Saddam são uma miragem e a maioria dos americanos hoje critica a guerra, a ode à liberdade serviu para revestir, com a nobreza dos ideais humanistas, uma aventura brutal, contraproducente e sem-fim à vista. Era do Iraque que Bush falava - sem ousar dizer o nome do desafortunado país. Desse ângulo, antes as suas palavras fossem para valer. Melhor uma elegia, embora inconseqüente, ao valor supremo da civilização do que a captura e o rebaixamento da sublime palavra liberdade para continuar a iludir a América. Além disso, como ironizou o sociólogo Orlando Patterson, da Universidade de Harvard, "o que o presidente entende por liberdade pode se perder na tradução para o resto do mundo". Isso porque a direita americana "privatizou", como diz ele, a idéia de liberdade, reduzindo-a à autonomia e ao poder individual, numa época em que o conceito se tornou sinônimo de direitos civis, participação política e justiça social. Bush não usou uma única vez o termo pobreza ao falar da opressão no mundo. E jamais ocorreria a seus escribas citar o "ficar livre da privação" (freedom from want) do presidente Franklin Roosevelt, nos anos 1940. Mas então os Estados Unidos promoviam de fato a liberdade no mundo.