Título: Prova de fogo no Iraque
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Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

U ma das mais estranhas eleições de que se tem notícia se realizará amanhã no Iraque para a formação de uma assembléia nacional de 275 membros, incumbida de três missões decisivas para a reconstrução da soberania do país: organizar em 30 dias um novo governo interino, a partir da designação de um conselho composto por um presidente e dois vices (que, por sua vez, indicará o futuro primeiro-ministro); elaborar, até agosto, uma nova Constituição (a ser referendada em outubro); e organizar, com o Executivo, eleições gerais em dezembro para o primeiro governo verdadeiramente democrático nos antigos domínios de Saddam Hussein. O cronograma estabelecido prevê adiamentos de até seis meses das duas etapas derradeiras. Os iraquianos votarão neste domingo em 84 listas partidárias fechadas (das quais não chegam a uma dezena as verdadeiramente importantes), que agrupam um milhar de candidatos cujos nomes, com raras exceções, os eleitores só saberão ao ler as cédulas. Depois da eleição do sucessor de Yasser Arafat para presidente da Autoridade Palestina, é o segundo evento do gênero em três semanas no mundo árabe, onde a ida às urnas está longe de ser uma rotina. Ambos os fatos têm em comum ocorrerem sob ocupação estrangeira. Radicalmente diferente é a posição dos movimentos de resistência, em cada caso - que é o que torna esquisito o pleito iraquiano.

Na Palestina, como se sabe, as organizações armadas deram as costas à eleição, mas não a sabotaram nem declararam ilegítimo o seu desfecho. Já no Iraque, as facções mais ferozes da insurgência que reúne militares do regime deposto, membros do banido partido Baath, nacionalistas seculares (como era Saddam), fanáticos religiosos ligados ou não à Al-Qaeda - ao que se estima, 40 mil militantes e 160 mil simpatizantes ao todo - decretaram uma espécie de fatwa, condenando à morte os participantes do processo conduzido pelos "infiéis e os traidores". Para a guerrilha, a intimidação dos eleitores é tão essencial quanto, para os EUA, a sua participação.

A escalada dos atentados terroristas nos últimos dias e as medidas de segurança adotadas pelo governo provisório do primeiro-ministro Iyad Allawi, excepcionais até para os padrões da era pós-Saddam - incluindo o segredo, até a 25.ª hora, sobre os locais de votação -, marcam o clima em que será jogada a cartada decisiva para as partes em confronto. De um lado, os americanos, os xiitas em vias de serem maioria na Constituinte, como já o são no país, e os curdos do norte rico em petróleo, ansiosos por um Iraque marcadamente federativo onde possam manter a sua autonomia. De outro, os insurgentes, bem como os sunitas em geral, que sempre dominaram o país e temem acabar submetidos, no limite, a uma teocracia xiita à iraniana (embora sunitas também façam parte da chapa Lista Iraquiana, do xiita moderado Allawi).

O presidente Bush terá motivos para cantar vitória se metade dos 14 milhões de eleitores (numa população de 25 milhões) comparecer às urnas. Será, decerto, um feito. Porque se prevê derramamento de sangue pelo menos nas 4 das 18 províncias onde a guerrilha é onipresente, o que inclui setores de Bagdá, e porque também em outras tantas províncias o ato de votar será, mais do que uma significativa manifestação de civismo, uma demonstração de grande coragem pessoal. Todos os dias, iraquianos dizem a jornalistas que gostariam de votar, mas se absterão para não serem mortos. É uma das poucas coisas que salta aos olhos da mídia estrangeira, sem meios de apurar com independência o que se passa em boa parte do país conflagrado.

Qualquer que seja o índice de comparecimento, só aquilo que a nova maioria parlamentar e o novo governo conseguirem fazer para estabilizar o país, sob fogo da insurgência, dirá se o multiétnico Iraque deu um passo efetivo rumo ao consenso político-institucional e à recuperação da soberania, ou se ficou mais próximo do pior cenário - uma guerra civil cujo único desdobramento previsível, além do caos, será o prolongamento sine die da presença americana. Em meio ao ceticismo, há indícios auspiciosos. A favorita Aliança Iraquiana Unida, endossada pelo grão-aiatolá Ali al-Sistani, emite sinais tranqüilizadores. "Não haverá turbantes no governo", promete um de seus líderes. De seu lado, os sunitas, tendo decidido boicotar o pleito, indicam que não se farão de rogados se forem chamados a integrar o Executivo. Que Alá ilumine uns e outros.