Título: Agricultura e negociações comerciais
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Desde a criação do então Gatt, em 1945, as regras negociadas em Genebra para regular o comércio internacional se limitaram a bens industriais, serviços e matérias relacionadas com o comércio, como investimento, compras governamentais e propriedade intelectual. Somente agora, na Rodada de Doha, os produtos agrícolas foram incluídos na agenda negociadora. Em muitos casos, os representantes dos países em desenvolvimento, onde a agricultura é um fator crucial para o crescimento econômico, não têm o completo domínio dos temas e das nuances dessas complexas negociações. No momento em que as negociações da Rodada de Doha da OMC começam a sair do impasse e a avançar lentamente, o Banco Mundial lançou um estudo que versa sobre um dos temas mais controversos das negociações: agricultura e desenvolvimento. Com o intuito de chamar a atenção para os principais aspectos de interesse dos países em desenvolvimento nas negociações, o livro intitulado Comércio Agrícola Global e os Países em Desenvolvimento é ao mesmo tempo abrangente e bastante detalhado em cada um dos tópicos que aborda. O documento faz uma análise profunda e isenta dos padrões internacionais do comércio de bens agrícolas, a partir da qual examina os impactos dos regimes comerciais adotados pelos países, bem como as implicações de uma eventual liberalização comercial. Para evitar generalizações o trabalho do Banco Mundial analisa separadamente o mercado dos produtos (açúcar, café, laticínios, algodão, arroz, trigo, frutas e legumes) mais transacionados do mercado agrícola, incluindo uma simulação das conseqüências da liberalização do mercado de cada um destes bens. Os capítulos que tratam dos mercados individuais de produtos agrícolas trazem no final uma proposição das prioridades para a agenda de negociações de Doha, servindo como um "manual" que pode ajudar a balizar os pleitos dos países em desenvolvimento - até aqui, os principais perdedores diante das distorções comerciais impostas pelo protecionismo dos países industrializados. A liberalização dos mercados de produtos agrícolas significa a abolição de aproximadamente US$ 315 bilhões anuais em apoio oficial direto aos produtores dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), dos EUA e do Japão. Subsídios domésticos e tarifas altas são apontados pelo Banco Mundial como fatores que afetam significativamente o mercado mundial e os produtores e consumidores dos países em desenvolvimento. Contribuem para estreitar artificialmente os mercados de commodities agrícolas, reduzindo o volume transacionado e o número de agentes, o que, por sua vez, resulta em alta volatilidade de preços. As distorções nos preços domésticos das commodities deprimem os preços mundiais e desencorajam a entrada de novos produtores competitivos nos países que não oferecem incentivos, além de atrasar ou até mesmo impedir a saída de produtores não competitivos do mercado. O aparente aumento no esforço pela liberalização dos mercados agrícolas, contudo, não se traduziu em resultados animadores: os países em desenvolvimento, que de modo geral têm vantagens comparativas na produção de bens agrícolas, não conseguiram expandir sua fatia no mercado global desses produtos. Ao contrário, foi reduzida de 37,8% em 1981 para 36,1% em 2001. Atualmente, 48% de todo o intercâmbio global de bens agrícolas se dá entre os países desenvolvidos e mais de um terço apenas dentro da União Européia (UE) e do Nafta. Independentemente da forma que tomam os benefícios aos produtores de países industrializados, o estudo do Banco Mundial conclui que eles afetam os mercados produtores e consumidores do mundo todo, o que corrobora a proposição teórica dos malefícios do protecionismo ao bem-estar econômico global. O estudo não deixa dúvidas de que a liberalização dos mercados agrícolas, de modo geral, cria mais ganhadores do que perdedores. A identidade dos que ganham ou perdem e a magnitude da variação geral de bem-estar econômico diferem em cada mercado. Os produtores dos países em desenvolvimento, especialmente o Brasil, seriam os principais beneficiários da liberalização comercial em termos de emprego e renda. Podendo vender num número maior de mercados, sem a concorrência desleal de produtores subsidiados pouco eficientes, veriam os preços internacionais aumentarem. Os consumidores de mercados altamente protegidos também se beneficiariam com a liberalização, desfrutando de menor preço doméstico, à medida que caem as tarifas de importação e aumenta a variedade de produtos. De modo geral, a liberalização do comércio mundial de bens agrícolas reduziria a pobreza nos países subdesenvolvidos, tanto por causa da vantagem comparativa de que estes desfrutam na produção dessas commodities como por causa da importância do setor primário na geração de renda interna. Os maiores perdedores seriam a UE (redução de 23% do emprego no setor), o Japão (26%) e a China (6,6%). Os países em desenvolvimento que desfrutam de acordos preferenciais com os grandes países consumidores, como é o caso de diversos países africanos, também seriam perdedores, sacrificados em nome da eficiência alocativa no mercado internacional. Caso não se modifique a tendência protecionista dominante, o Banco Mundial, numa de suas conclusões, indica que uma estratégia de desenvolvimento baseada na exportação de produtos agrícolas favorecerá o aumento da pobreza. Uma efetiva reforma das regras do comércio internacional depende da vontade política dos atores centrais da cena internacional, que são justamente os países desenvolvidos, que concentram quase metade do comércio de produtos agrícolas e distorcem os mercados internacionais com barreiras e subsídios. Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos EUA e na Grã-Bretanha